Há que enterrar os nossos palhaços, se queremos manter um ar sério... até os elefantes, antes de morrer, têm o cuidado de o fazer em sítio adequado...
terça-feira, 4 de outubro de 2016
Noite
A chuva ressalta no cimento reluzente de água que se precipita em direcção às valetas. Quero estugar o passo para fugir ao mau tempo, mas isso parece impossível – só tenho aquela lentidão, e andar custa-me um esforço desgastante, como se as pernas tivessem ganho ferrugem nas articulações. É num paredão que bordeja as águas escuras de um rio que desconheço, por uma noite tempestuosa de Inverno, e não recordo como cheguei aqui. Ignoro mesmo de que rio se trata, a menos que seja antes um porto de mar, que a noite e o temporal não me deixam ver além do próximo passo. O nome de Vladivostok assalta-me a mente, mas o que estaria eu a fazer na Rússia, ou em Paris ou Londres, que também pode tratar-se do Sena ou do Tamisa. Nunca visitei qualquer dessas cidades, e tenho a certeza de que também nunca estive aqui, por isso pode ser qualquer delas. A chuva continua a cair, impiedosa e fria.
Tento de novo mover-me mais depressa. É imperioso que me apresse, que não pare, que não me deixe capturar pelo terror. O terror? A palavra surgiu-me no espírito, e percebo que é isso que está mal. Estou aterrorizado, e sou perseguido pela única coisa que pode aterrorizar alguém. Vampiros? Por favor, nem uma criança se assusta já com esses pantomineiros de capa negra e escarlate, faces caiadas e dentes de abre-latas. Nem fantasmas ou zombies ou demónios das trevas, que nada disso sobrevive sequer ao simples clarão de uma lanterna de seis volts.
Não, o terror verdadeiro vem de dentro de nós, vive em nós. É aquilo de que somos feitos, aquele pensamento que nunca nos permitimos ter, mas que está sempre num recanto do nosso espírito. De vez em quando sofremos um relance dele, e bebemos para o pôr a dormir e podermos de novo escondê-lo. Mas este tinha-me encurralado num cais desconhecido e sombrio, entre o negrume agoirento das águas e a bênção amaldiçoada da chuva que não parava de cair. Já não estava dentro de mim, tinha conseguido sair, o maldito, e envolvia-me na sua sombra putrefacta, que me deixava um trago amargo na boca e nas narinas. Sem ter mais escolhas – alguma vez as tivera? – deixei-me despedaçar.
E no momento seguinte estava longe dali, num campo verde e belo. Era Primavera, e encontrava-me cercado de gente que me fitava com amor e carinho. “Até que enfim,” disse a minha mãe. “Estávamos a ver que nunca mais adormecias!”
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2 comentários:
Se por acaso tiver um blogue mais actual será que poderia dizer-me qual é?
Gostei do que li.
Muito boa tarde!
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