tag:blogger.com,1999:blog-61040596606706037392024-03-14T08:29:52.907+00:00Sepulcro de ArlequinsHá que enterrar os nossos palhaços, se queremos manter um ar sério... até os elefantes, antes de morrer, têm o cuidado de o fazer em sítio adequado...Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.comBlogger61125tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-11939520985624480132016-10-04T00:52:00.000+01:002016-10-04T00:52:01.519+01:00NoiteA chuva ressalta no cimento reluzente de água que se precipita em direcção às valetas. Quero estugar o passo para fugir ao mau tempo, mas isso parece impossível – só tenho aquela lentidão, e andar custa-me um esforço desgastante, como se as pernas tivessem ganho ferrugem nas articulações. É num paredão que bordeja as águas escuras de um rio que desconheço, por uma noite tempestuosa de Inverno, e não recordo como cheguei aqui. Ignoro mesmo de que rio se trata, a menos que seja antes um porto de mar, que a noite e o temporal não me deixam ver além do próximo passo. O nome de Vladivostok assalta-me a mente, mas o que estaria eu a fazer na Rússia, ou em Paris ou Londres, que também pode tratar-se do Sena ou do Tamisa. Nunca visitei qualquer dessas cidades, e tenho a certeza de que também nunca estive aqui, por isso pode ser qualquer delas. A chuva continua a cair, impiedosa e fria.
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Tento de novo mover-me mais depressa. É imperioso que me apresse, que não pare, que não me deixe capturar pelo terror. O terror? A palavra surgiu-me no espírito, e percebo que é isso que está mal. Estou aterrorizado, e sou perseguido pela única coisa que pode aterrorizar alguém. Vampiros? Por favor, nem uma criança se assusta já com esses pantomineiros de capa negra e escarlate, faces caiadas e dentes de abre-latas. Nem fantasmas ou zombies ou demónios das trevas, que nada disso sobrevive sequer ao simples clarão de uma lanterna de seis volts.
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Não, o terror verdadeiro vem de dentro de nós, vive em nós. É aquilo de que somos feitos, aquele pensamento que nunca nos permitimos ter, mas que está sempre num recanto do nosso espírito. De vez em quando sofremos um relance dele, e bebemos para o pôr a dormir e podermos de novo escondê-lo. Mas este tinha-me encurralado num cais desconhecido e sombrio, entre o negrume agoirento das águas e a bênção amaldiçoada da chuva que não parava de cair. Já não estava dentro de mim, tinha conseguido sair, o maldito, e envolvia-me na sua sombra putrefacta, que me deixava um trago amargo na boca e nas narinas. Sem ter mais escolhas – alguma vez as tivera? – deixei-me despedaçar.
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E no momento seguinte estava longe dali, num campo verde e belo. Era Primavera, e encontrava-me cercado de gente que me fitava com amor e carinho. “Até que enfim,” disse a minha mãe. “Estávamos a ver que nunca mais adormecias!”
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-59857486121976170142015-06-24T01:25:00.000+01:002015-06-24T01:25:16.132+01:00King Lear Act 4, scene 1, 32–37</br></br>
<b>"As flies to wanton boys, are we to the gods; </br>
they kill us for their sport."
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William Shakespeare</b>
</br></br>Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-81981453521462901002014-12-19T03:24:00.000+00:002014-12-19T03:25:21.841+00:00Quero mais!</br></br>Quero mais, quero muito mais. Quero mais de mim, quero mais dos outros. Sobretudo dos outros. Quero que sejam mais do que são, quero que se tornem naquilo que podem ser. Não peço, muito menos exijo. Exigir, só exijo de mim, porque nunca me bastarei. Não quero ser amanhã o que sou hoje, porque sei que posso ser mais do que sou agora.
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Dos outros, nada peço. Sei que são muito, sei que valem muito, pelo menos os que eu conheço, digo, os que quero conhecer. Sei que são mais do que eu mereço, e tantas vezes mais do que eu poderei ser. Mas enquanto eu estiver por perto, quero que eles sejam mais do que são. Por eles, por tudo o que ainda podem alcançar, por tudo o que podem crescer. E se eu puder ser degrau nessa escada que eles ainda podem subir, serei talvez um degrau mais alto do que fui ontem. Porque a felicidade do que somos não nos pode impedir de lutar, de melhorar, de ser mais ainda.
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Se à minha volta vir gente caída, quero estar de pé para lhes dar a mão. A mesma mão que espero me estendam quando for eu a cair, quando as forças me faltarem, quando a vontade de permanecer se instalar. Porque quero ser mais do que sou, cercado de amigos que não se instalam nem me deixam instalar. Se amanhã morrer igual ao que sou hoje, terá sido bastante. Mas se viver, quero ser mais e melhor. Valha ou não a pena.
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-55541123376061512522014-10-28T01:13:00.000+00:002014-10-28T01:13:21.103+00:00Reconstrução
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Tantos anos longe de mim! Três décadas ausente de um corpo vazio, que apenas parecia habitado. Regressei há três anos, e ainda não consegui pôr ordem na casa. Não se recupera uma vida começando do zero, porque essa vida foi de facto vivida, ainda que na minha ausência, e o ponto zero já está muito longe. A casa não está vazia, e os móveis em cacos não podem ser ignorados. </br></br>
Trinta anos em que o meu corpo viveu só, e por si só decidiu e fez, e agora que voltei tenho de pôr em ordem todo o caos que ele deixou. Que eu deixei, porque de nada adianta dizer que não estava cá quando tudo foi dito e feito. Tenho de aprender a ser, mas nunca ignorando o que fui, responsabilidades a que não posso fugir. </br></br>
Três anos difíceis, com tanto trabalho que só eu pude fazer, que de nada adiantaria explicar aos que julgaram que estive sempre cá, que nunca parti, que não houve regresso. Trabalho tão complexo, tantas vezes mal feito por o não ter sabido fazer melhor, por talvez não ser possível fazê-lo melhor. Trabalho talvez vão e fútil, mas que está quase completo. </br></br>
Por fim a casa começa a parecer um lar, por fim começo a habitar em mim mesmo. Ainda falta muito, mas começo por fim a saber quem sou. Preste ou não preste, será sempre quem eu sou. E serei por fim alguma coisa.
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-78614250901617707092014-10-15T04:37:00.000+01:002014-10-15T04:37:23.923+01:00Parado em queda livre
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No fim da estrada ficava o penhasco. O homem ainda não sabia disso, e percorria sem preocupações a estrada, essa estrada que terminava num penhasco que não existia, tal como nenhum penhasco existe.</br></br>
Dá jeito por vezes falar de penhascos, ou até escrever umas palavras sobre eles, mas isso não os faz existir. Nenhum penhasco existe, como não existe o frio ou a escuridão. O frio é só a ausência de calor, a escuridão não passa da ausência de luz, e um penhasco é apenas a ausência de algo a que nos possamos agarrar, de um solo onde possamos assentar a nossa própria existência. Podemos verificar se a quantidade de calor é excessiva ou insuficiente, discutir se a luz é escassa ou se é demasiada, e constatar se estamos bem seguros ou em desequilíbrio. Mas o vazio não se contabiliza, e sobre o vácuo nada há a dizer, e muito menos a fazer. </br></br>
O homem chegou ao fim da estrada e caiu no penhasco. Melhor dizendo, caiu nessa não existência onde nada havia, fosse luz ou calor ou um mundo que o pudesse segurar. A queda foi longa e vazia, e também ele foi deixando de existir. </br></br>
Não soube se chegou a tocar o fundo, nem sequer se haveria esse fundo, ou em que estado ele próprio lá chegaria. O grande nada que é o penhasco continuou a existir, vazio como sempre. O nada não ocupa espaço, e ele também já não.
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-58828262884596685802014-09-15T00:46:00.002+01:002014-09-15T00:46:36.468+01:00DesabafoIsto vai acabar mal. Estou farto de dar voltas ao assunto, de tentar arranjar alguma maneira de poupar os outros, mas as paredes fecham-se à minha volta. E só uma coisa é certa: doa a quem doer, isto vai acabar mal.Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-41360108445695784892014-09-12T01:32:00.000+01:002014-09-12T01:32:06.203+01:00Os corvosNo monturo de mim pousam corvos em bando. Negros e sinistros, soturnos e ferozes, desfazem com bicos férreos a lixeira do que sou. Estes retalham com método o fígado, aqueles arrancam pedaços de pulmões que já pouco valem, e outros, tantos outros, encarniçam-se sobre o coração sem lhe dar repouso. Os órgãos imprestáveis retorcem-se, sangram, e pedem um socorro que não virá jamais. </br></br>
Contra tamanho bando tenho apenas uma lâmina, instrumento pobre e lastimável para tão momentosa tarefa. Os cortes sangrentos não os alcançam, e apenas logram distraí-los por momentos breves, demasiado breves. Urge cortar mais fundo, penetrar a carne já putrefacta que reveste a estrumeira onde eles se refastelam. </br></br>
Ainda estou longe, muito longe, mas vou chegando mais perto. A lâmina entra melhor na carne, o sangue peçonhento escorre, e os corvos quedam-se num susto mais ponderado. Um dia chegarei finalmente a eles, e num golpe súbito destroçarei o bando maligno. Então, poderei por fim apodrecer em paz...
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-74467594775728488692014-09-09T16:56:00.000+01:002014-09-09T16:56:23.838+01:00SepulcroQuatro paredes sem porta nem janela, claustro desprovido de água e comida e amor. Quatro paredes e uma faca, brinquedo que nada mais é. Uma faca é fácil demais quando há tanta coisa para pôr em ordem, papéis e burocracias e toda uma vida para arrumar. E leva tanto tempo, meu deus! Tanto tempo!</br></br>
Quando terá fim este túnel desordenado? Quando poderá a faca deixar de ser um brinquedo? Quando cumprirá ela a sua função de entalhar as quatro paredes de uma caixa mais pequena, mais adequada às minhas dimensões? Eu não ocupo assim tanto espaço, e perco-me de mim na vastidão destas quatro paredes que nunca terão outra saída.
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-46101250145180409972014-08-22T22:42:00.002+01:002014-08-22T22:42:30.147+01:00NaufrágioComo falar de amor quando é vedado falar de amor? Não sei. Pela primeira vez, não sei o que escrever. Há por aí milhares de textos de amor infeliz, mas são decerto falsificações, escritas por gente que inventou tudo aquilo sem o ter vivido. O amor malogrado não é eloquente, é sufocante.Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-1687580847204664642014-06-03T23:41:00.000+01:002014-06-03T23:41:18.766+01:00Adubo<a href="http://2.bp.blogspot.com/-YfORiAQyTSU/U45Op86vG1I/AAAAAAAACZg/yo7um8lWSUg/s1600/Manure+Happens.jpg" imageanchor="1" ><img border="0" src="http://2.bp.blogspot.com/-YfORiAQyTSU/U45Op86vG1I/AAAAAAAACZg/yo7um8lWSUg/s320/Manure+Happens.jpg" /></a></br></br><i>Memento, homo, quia pulvis es, et in pulveram revertiris</i>. E já será tarde, por mais cedo que venha a ser. O estrume quer-se na terra, a fazer crescer as plantas. Estrume com braços e pernas e bocas e frases de papo, estrume que anda e fala e enoja quem cheira as suas palavras, não é apenas uma aberração; é um atentado à saúde pública. Não incomodem por minha causa o coveiro, a quem o trabalho não compete; chamem antes um jardineiro, e dê-se o assunto por findo.Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-83761618222359863702014-06-02T00:03:00.003+01:002014-06-02T01:15:38.991+01:00Epitáfio<a href="http://1.bp.blogspot.com/-C0131Jxg37g/U4vByLpx7SI/AAAAAAAACZQ/1AhLbrUE9XI/s1600/Walking+in+Graveyard.jpg" imageanchor="1" ><img border="0" src="http://1.bp.blogspot.com/-C0131Jxg37g/U4vByLpx7SI/AAAAAAAACZQ/1AhLbrUE9XI/s320/Walking+in+Graveyard.jpg" /></a></br></br>Se eu morresse não escrevia mais, e era um descanso para todos. Se eu morresse era um descanso para todos, com a vantagem de não terem mais de me ouvir ou ler ou aturar. Haveria chatices, claro – participações de falecimento e telefonemas de condolências, e o sempre dispendioso aborrecimento de dispor de um corpo que já não sabe sair do caminho quando incomoda, e que nem se lembra mais de se lavar sozinho, e bem precisa, que já começa a cheirar mal, ainda para mais com o calor que faz, que pena não caber no frigorífico, resolviam-se dois problemas de uma assentada, ao preço a que está a carne. Mas eram chatices para os outros – o morto é o único que ninguém importuna num funeral, e assim é que deve ser. Quem já está morto não devia ter de aturar chatices, mesmo que ainda cá ande.Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-53576144935422129472014-04-16T02:55:00.000+01:002014-04-16T02:55:16.884+01:00Pedra
Por onde ando, é pedregoso o terreno. Deserto que me contém, feito de poeira e calhaus e aridez. A pedra é poeira que assentou e endureceu, devagarinho, durante muitos anos. Não tem mistério, é só pó e nada, um nada seco e duro.
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Fora do deserto, nada há senão pedra. Pedra lisa e dura, cintilando num brilho de arestas cortantes. A pedra é lava que arrefeceu, rigidez do que um dia foi fluido. Não tem mistério, é apenas fogo que já não arde, e que tudo arrefece em sua volta.
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E eu vou sendo de pedra também, sedimentando a cada maré que vasa e não retorna. Só este coração granítico continua a bater, e não tem sequer a decência pétrea de se imobilizar. Para que bate ele, o canalha?
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(isto daria um epitáfio bonito se eu acaso morresse hoje. Palavras que o cinzel insensível gravaria com gosto na pedra destinada a cobrir outra pedra, aquela pedra em que eu finalmente me assumiria, sem veleidades de ser outra coisa qualquer.)
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Deixemo-nos de asneiras: peguem em mim de uma vez por todas e ergam-me numa praça qualquer, sobre um pedestal baixinho, enfeitado por ilegível placa que finja narrar um arremedo de vida. Sempre será mais uma fotografia a juntar à coleção de qualquer turista consciencioso, com os filhos em pose rodeando o mamarracho. E quando não estiver a servir nessa vocação, para dar à pedra fria um pouco de calor e vida, que os pombos me caguem em cima enquanto passam voando, sem pensarem sequer no que fazem.Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-26501476547437951802014-03-27T00:58:00.000+00:002014-03-27T00:58:02.262+00:00TerraUm pedaço de terra, misturado com pedras e merda, pode ter consciência, ideias e sentimentos. A ideia parece fantástica, mas foi precisamente o que aconteceu, quando um monte de terra ganhou vida, e pensou e sonhou, e sofreu por fim quando o sonho acabou.
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Um pedaço de terra pode sentir e sonhar, e morrer por dentro quando o sonho morre. Mas isso não muda nada de relevo. Um pedaço de terra, feliz ou devastado, será sempre o que nunca deixou de ser: um monte de pó e merda.
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-86177570710572124712014-03-16T19:24:00.001+00:002014-03-16T19:33:41.687+00:00Plágio<p dir="ltr">E uma apatia frouxa e solta, <br>
Uma enorme lassidão, <br>
Entra em mim, e nem me revolta. <br>
Chove merda à minha volta, <br>
E está-se cagando o meu coração.</p>
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-81536086532253344452014-02-17T13:31:00.000+00:002014-04-16T02:57:37.377+01:00CrazyI'm crazy. I mean, I think I'm crazy. Can't be really sure, since the lab won't test me anymore. They say the last time they gave me a cat scan, the cat got brain damage. So, I'm just probably crazy, which is more than can be said for the cat, who now believes itself to be a lamp post. As for me, I'm quite convinced that I am not a lamp post, I'm just cookoo bananas. It is a colourful state of mind, and not at all a bad thing to be. It has its drawbacks, though.
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People don't quite get you when you're crazy. They think it's ok to push you around because you don't mind anyway, and they fail to understand that the only reason you don't mind it is because it is not worth minding anything. Until some day, for some reason, you happen to hurt, and that's when it all goes sour. Because crazy people shouldn't hurt, just like clowns should not cry. You don't get to hurt when you're crazy.
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So you bottle it inside and go on living; you keep it to yourself and go on smiling, until the day you snap and do something crazy. And then you're in trouble, because you didn't have the right to do that. Crazy people don't even get the right to be crazy.
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And it's all fine to say that I would not be convicted by a jury of my peers, but I have no peers. No one has any peers, we're just too different from one another. Every man is an island, a big island of trifle and nothing in a vast, trifle ocean of nothingness. Then one day the island sinks, and the emptiness becomes just a little bit emptier. That's not the end of the world, it's just the end of nothing, so who should care?
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I started caring. I'm tired of stuff that no one in their right mind would care about. But I'm not in my right mind, I'm crazy. No more nice, no more easy going. Just plain nuts. And I'm fine with it. To the extent, at least, that I can be said to be fine.
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-89671707117847647022013-10-25T23:08:00.000+01:002013-10-25T23:08:25.522+01:00DesintegraçãoO despertador andava há vários dias com umas cólicas nos ossos, e nesta manhã esqueceu-se completamente de me acordar. Despertei estremunhado ao som gorgolejante de uma potência irracional, e tomei duche como quem lava o seu hamster preferido na esplanada de um café. Enquanto tomava o pequeno-almoço, cismando sobre a razão por que os melros se parecem tanto com as quatro da tarde, apercebi-me de que me tinha esquecido de pôr o cérebro.
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De pouco me serviu emendar o meu erro: a maldita coisa continuava a não funcionar. Ainda parecia uma esponja, como nos tempos em que trabalhava, mas agora era uma esponja velha e encardida, gasta de tantas sujidades e barrelas e mais porcarias ensopadas e espremidas e repetidas até que a própria falta de razão deixasse de fazer sentido. Dei-lhe umas pancadas para ver se o espertava, e o cotovelo esquerdo brindou-me com um pequeno pontapé no estômago.
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Pareceu-me preferível não lhe mexer mais, e ir dar uma volta. Pus o chapéu, tendo o cuidado de conservar a cabeça por baixo dele, e desci a dúzia de degraus, tropeçando criteriosamente em todos os números primos. Na rua, trotinetas melodiosas esvoaçavam num espaço vetorial que não estava ali na véspera, e é claro que chovia.
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Nesse momento empreendi um esforço louvável, ou pelo menos um esforço que eu sem hesitar louvei, para tentar pensar coerentemente, mas a coerência tinha-se afogado uns dias antes, e o artista que nos pinta a vida ainda não tinha desenhado nada que a substituísse. O que restava do meu cérebro indignou-se com a tentativa, e pôs-se a pensar em frangos assados.
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Foi nesse ponto que um autocarro saiu de trás da quinta sinfonia e me atropelou, deixando-me feito em pedaços. O dia estava decididamente a correr mal, e achei melhor limpar o sangue e voltar para casa, onde passei o resto da vida a engraxar velhos teoremas de solas rotas. Deve haver coisas piores para fazer, sobretudo para alguém que esqueceu já de como se faz seja o que for. O cérebro espirrou uma última vez, mas já nem dei por isso.
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-59628358793751093552013-10-12T02:59:00.000+01:002013-10-12T02:59:37.016+01:00Parce SepultisTu por aqui? Homem, estava bem longe de te ver. E ainda bem que te encontro, que já me sentia a fazer papel de parvo aqui parado. Estes velórios são uma seca. Eu o que foi, foi terem-me apanhado desprevenido, e já não fui a tempo de inventar uma desculpa. Ouve lá, ao menos sabes quem é o morto?
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Sim, eu sei que é o que está deitado no caixão lá ao fundo, não te faças de parvo. Também não conheces? Eu nem sei se conheço se não, disseram-me que era um tipo lá do banco, um gajo que toda a gente conhecia. Eu também sou gente, portanto devia conhecer, mas o nome não me diz nada. Parece-me que ouvi alguém dizer há bocado que o gordo estava cá, mas ainda não o vi. Talvez ele saiba, é gajo para isso.
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E o que tens feito, que já não te vejo há meses? Pois, o costume, isso é o que eu também faço. Espera aí, talvez esta aqui saiba alguma coisa sobre o morto. Desculpe, minha senhora, conhece por acaso… não, não conhece. Ninguém conhece, pelos vistos. E contudo dizem que era um tipo conhecido. Por acaso não viu por aí o gordo? Sim, parece que está cá. A fazer o quê? Não faço ideia. Nunca soube o que faz ele. Onde quer que esteja, ninguém sabe nunca quem é ele ao certo, ou o que está a fazer ali. Acho que nem o nome dele sabem, por isso é que todos lhe chamam o gordo.
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Fui há tempos a um almoço, e lá estava ele, com o seu ar de palerma bem-intencionado. Era um aniversário, e não estranhei vê-lo ali, mas reparei que toda a gente se afastava um bocado dele, e o olhavam de soslaio, como quem não está bem certo de conhecer ou não uma pessoa. Ainda tentei perceber como se chamava, mas não ouvi ninguém trata-lo pelo nome. Só dias mais tarde é que vim a saber que era ele o aniversariante. Quando o voltei a encontrar, ainda pensei em dar-lhe os parabéns, mas ele disse um disparate qualquer, e perdi a vontade de falar no assunto.
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Aparece em todo o lado, e agora que o queremos ver, ninguém o encontra. Afinal ninguém o viu, só dizem que alguém disse que ele estava cá. E isto do morto está-me a fazer espécie. Vou lá dar uma espreitadela.
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Não vais acreditar nisto, pá. O gajo no caixão é o gordo! Bem diziam que ele estava cá. Olha, pelo menos agora já ninguém tem de se preocupar em saber o nome dele. Ouve, temos de pôr a conversa em dia. Queres combinar um almoço?
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-53130988432324039022013-08-04T01:29:00.000+01:002013-08-04T23:13:24.084+01:00A diferença entre nada e coisa nenhumaÉ pequeno o rato,</br>
Caçador o gato,</br>
E palerma o pato.</br>
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Mas é já outra coisa</br>
A rata da gata,</br>
Que não tem cheta, e anda à pata.</br>
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São palavras, só palavras.</br>
E Deus, que não fez o rato,</br>
Nem o pato nem o gato,</br>
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Não é criador de nada.</br>
É só um fala-barato.
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-16275236550056577262013-06-07T23:37:00.000+01:002013-06-07T23:37:19.861+01:00Pausa
Não era um dia bom. Poucos dias o eram, nos últimos tempos, mas aquele estava a ser particularmente mau. Foi trabalhar como em todos os dias, porque era isso que fazia sempre. Teria nesse dia especial dificuldade em responder a quem lhe perguntasse por que razão era isso importante, qual o motivo para continuar a fazê-lo. Ninguém lhe perguntou nada disso, como seria de esperar. Não são perguntas que se façam, ou se devam sequer fazer.
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Mas não começou logo a trabalhar. A tristeza não costumava ser um entrave, mas há limites para a quantidade de tristeza que se pode suportar. A tristeza, mas também o vazio, a falta de objetivo. Não porque não tivesse objetivos, mas porque deixara já de acreditar que algum objetivo valesse a pena. Os colegas viram-no sentado na secretária, fitando com olhos mortiços o telefone que tocava, mas ninguém lhe disse nada.
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Sentia uma ansiedade estranha, a ânsia do que não podia existir. Não ansiava pelo inatingível, apenas pelo impossível. Algo que desse sentido a uma vida absurda, tão irrelevante como todas, tão oca que nada a podia começar sequer a encher. Procurou uma razão que o impedisse de abrir a pequena faca que guardava na gaveta e cortar os pulsos com ela, mas não foi capaz de achar nenhuma.
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O facto é que também não havia qualquer razão para o fazer, num mundo em que não há qualquer razão para fazer seja o que for. Nada mudaria, porque nenhuma mudança permanece. O sangue seria limpo da secretária, coisa que numa perspetiva cósmica nem sequer faria diferença, e o universo continuaria a sua marcha estúpida e acéfala em direção a coisa nenhuma.
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Quando não vale a pena fazer nada, o melhor é continuar com o que quer que se esteja a fazer, e no caso dele era o trabalho. O trabalho tem de ser feito, e nem vale a pena perguntar porquê, não se dê o caso de não haver resposta.
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Saiu da sua abstração com um suspiro que soprou para longe o universo. Recolheu a tristeza à gaveta das coisas inúteis, aquela gaveta que nunca se abre porque não vale a pena abri-la, e concentrou-se no trabalho. Engoliu o coração que lhe batia na garganta, calmou a respiração que arquejava. A vida era de novo uma coisa normal, desde que não se pensasse demasiado nisso. Com um sorriso quente na voz, atendeu finalmente o telefone: “Linha de prevenção do suicídio, boa tarde. Fale comigo.”
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-60188185577004856902013-05-16T03:08:00.000+01:002013-05-16T03:08:54.518+01:00Horizonte
Um sorriso quente, um olhar amigo, uma mão que se dá com ternura. Um momento fugaz, sempre curto demais, antes que a mão se solte e o olhar se desvie. O sorriso é uma memória, uma recordação que se esvai. A mão fica vazia, e é tudo.
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Ou um dia que não se deixa fechar em si mesmo. Há um desejo de agir, de ter alguém, de ser outro que não se pode ser sozinho. Mas não é boa altura, as pessoas têm planos, e o dia das pessoas normais não tem espaços vazios para momentos de improviso. O desejo morre só, e não há mais nada.
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Talvez haja noutro dia, talvez haja luz e riso e música que dance connosco, música que não grite sobre o lado sinistro de nós. Mas as luzes vão esmorecer como os risos, a música vai deixar um silêncio que só se preenche com os acordes infernais que entorpecem a mente. O intervalo acabou, e nada fica.
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E se ficar alguma coisa, será talvez um beijo. A alucinação multicolor de uns lábios suaves que enlouquecem e transportam para um mundo que não há, e no fim voltamos para onde estávamos, e compreendemos que não voltámos de parte nenhuma. Os lábios separam-se e seguem o seu destino, e é tudo.
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Mas pode não ser, pode haver mais. Haverá talvez outros beijos para preencherem o vazio que estará sempre pronto a recebê-los. Uma e outra vez, e outra, até que se fartem e esgotem. Só o vazio permanece intacto, só ele não se esgota nem farta. E para além do vazio, nada mais há.
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E cada dia diferente dos outros será sempre igual aos outros dias diferentes. Haverá beijos ou carinho ou emoção, mãos dadas e sorrisos, ou não haverá nada disso. Tanto faz. Nada haverá no fim, nada do que houve ou se esqueceu de haver.
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E a este amontoar de coisa nenhuma chamamos uma vida, vida de triunfos e fracassos que nada deixam de si, vida em que cada dia começa sempre vazio do dia anterior, caminhada estrénua do zero para o nada. Um dia a sucessão de dias termina, o vazio acaba como começou, e não haverá mais nada. O esgar fútil que inaugurou a caminhada inútil resolve-se por fim num espasmo de morte, o nada retorna ao nada sem nada entretanto ter sido. E será tudo.
Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-44264764929196002442012-09-04T00:21:00.001+01:002013-02-09T01:04:50.737+00:00Drácula</br></br>Sob a égide monumental da torre do relógio de Sighisoara, numa mesa de café que precária se equilibra no lajedo antigo, senta-se o conde Drácula. Aconchegando a capa negra de gola escarlate, cuidando de não manchar a camisa de folhos, o conde beberrica um café. Os lábios vermelhos destoam no rosto caiado, que um chapéu preto ensombra. Pretas são também as calças, a terminar em vulgares peúgas e sapatos decepcionantes.
</br></br><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://1.bp.blogspot.com/-Qqh6EArv5os/URWgjJ-9nSI/AAAAAAAAAWY/TO3MLpSn1po/s1600/IMG_4095.JPG" imageanchor="1" style="clear:left; float:left;margin-right:1em; margin-bottom:1em"><img border="0" height="320" width="240" src="http://1.bp.blogspot.com/-Qqh6EArv5os/URWgjJ-9nSI/AAAAAAAAAWY/TO3MLpSn1po/s320/IMG_4095.JPG" /></a></div>
O mármore comemorativo que a parede ostenta anuncia ao mundo que nesta casa nasceu, por alturas de mil quatrocentos e trinta, o famigerado Vlad Dracul, evento que a humanidade sofredora de bom grado teria dispensado. Este Drácula que agora se senta à porta é bem mais jovem, andará talvez na sua sexta ou sétima década, e causa mais dó que terror. A pintura que lhe branqueia o rosto não chega a ser uma lividez cadavérica, mas dá-lhe antes o ar de um palhaço triste. A espaços vêm crianças sentar-se ao seu colo para a fotografia, como se de uma nova espécie de Pai Natal se tratasse. Para essas ocasiões, tem uns dentes caninos postiços que emprestam mais realismo à personagem, mas o terror continua ausente.
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Ou talvez esteja lá. Há uma melancolia resignada no olhar do vampiro, um cansaço de quem contemplou vezes demais o horror da vida, a fadiga e as dores e o preço da comida, e só espera agora o repouso do túmulo, que não é de facto repouso porque não é de facto nada. Repouso era o do outro conde, cuja vida não terminava quando se deitava no ataúde, mas apenas recobrava forças com que à noite saísse e assustasse a vizinhança. Não será assim com este, que um dia se estenderá no túmulo para jamais se levantar, e nem sequer saberá disso. O horror da vida é não existirem vampiros.
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Num período desocupado, o conde levanta-se e vai buscar um cinzeiro. Segura o cigarro com as mãos enluvadas de negro. Sobre as luvas há um esqueleto pintado, ossos de fantasia a cobrirem os ossos verdadeiros, talvez ainda mais frágeis. Ao fim do dia irá para casa jantar, e sangrará de uma gengiva apodrecida, único sangue ainda presente no seu quotidiano. Ainda voltará outros dias, e depois tudo acabará. O relógio da torre prosseguirá impávido o seu pontual badalar, e continuaremos a não saber porquê.
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Uma jovem de saia exígua fotografa a placa, e troca com a sua companheira algumas palavras sobre Vlad Dracul, a grande atração de Sighisoara. O conde tosse o resto do cigarro, e o seu catarro tem apenas a fadiga de décadas. Só as lendas duram seis séculos.
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Transilvânia, 1 de Setembro de 2012Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-60405323721439575142012-07-22T02:40:00.000+01:002012-07-24T00:12:02.511+01:00Casa de SombrasA porta, de madeira rachada e escurecida pelo tempo, parecia negrejar no fundo da viela que um candeeiro se esforçava em vão por iluminar, mas que lograva apenas projetar uma fantasmagoria de sombras nas paredes onde a humidade escorria desde tempos imemoriais. O vento sibilante gelava-me a alma e os ossos, e já me parecera ouvir passos, murmúrios e pios de mochos. Decidi entrar.<br/><br/>
A casa era velha, muito velha. O sobrado, de tábuas corridas onde o desgaste do tempo abria frestas, tinha aquela solidez oca de tempos que já não são, como se não tivesse sido feito para suportar o volume prosaico de gente moderna. O inevitável papel de parede, de um padrão verde de ramagens, descascava em todo o lado, e a mobília era soturna, mesas pesadas e sérias, armários de patriarcal dignidade, e cadeiras empertigadas e altivas. Um velho louceiro guardava a porta da sala, arranhado e gasto já, veterano de antigas guerras que lograra manter uma dignidade tão fora de moda como os seus torcidos e tremidos. A casa parecia assombrada, e sobretudo mal-assombrada, pensei.<br/><br/>
O corredor, opressivo e sombrio, habitado de sombras perversas, desembocava numa escada larga e escarpada, que subi com o coração pesado. Por certo que não era senão a minha imaginação que conjurava aquele ominoso bater de asas coriáceas, como se revoadas de morcegos se indignassem à minha passagem. Entre rangidos dos degraus gastos, atingi o patamar superior, e entrei no primeiro quarto que se me deparou. Tal como no resto da casa, o pó recobria a madeira seca dos móveis, o verdete das ferragens, e as manchas do grande espelho de toucador. Era um espelho imponente, que se pressentia ter refletido na sua época figuras que bastariam para contar uma história recheada de toiletes e vestidos de baile e casacas de ópera, mas que agora só refletia a imensidão quieta de uma cama em desuso, e um fantasma. Decidi que se tratava apenas do meu vulto, que ali não destoava, aquilino e pálido, corcovando um pouco. Já seduzido pela atmosfera enfeitiçada, continuei a explorar, e fui dar ao escritório.<br/><br/>
Uma vasta escrivaninha suportava os velhos utensílios de escrita, a pena e o tinteiro e o mata-borrão, o selo e o lacre indispensáveis. Mas o tinteiro estava vazio, a pena não tinha aparo, e o lacre era um simples pedaço de plástico. A um canto, meio escondido, destoava um computador que era apenas velho, sem ser antigo.<br/><br/>
Que desilusão! A escrivaninha era de contraplacado. Os imponentes móveis, vistos de perto, mostravam os tubos de alumínio que os enformavam, e que davam suporte às chapas de material barato, imitação de madeira feita em mau plástico. O espelho era feito numa matéria sintética, mesquinha, e as tábuas do soalho não passavam de linóleo. A casa era rasca, vil e falsa, e mesmo o pó que a cobria não caíra do alto dos tempos, mas da broca de um berbequim furando estuque em mau estado. As sombras não eram fantasmas – eram só falta de luz. Saí da casa, sabendo que saía de mim próprio, pois já não podia viver dentro de mim. O gótico da minha casa não era o decrépito dos tempos. A casa só estava decrépita porque não prestava, e nem tinha qualidade que justificasse fazer-lhe obras.<br/><br/>
Estou sentado na viela, e o chão está húmido. Gostava de ter trazido comigo uma das cadeiras, mas não fui capaz. De resto, era provável que se partisse se a tentasse usar. Não há sombras de fantasmas, não há mistério ou ecos de romance. Há paredes nuas e escalavradas, e uma porta sem serventia. A penumbra desapareceu, e agora há só escuridão. E a chuva, que continua a cair.Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-16406897161493374132012-06-13T00:38:00.001+01:002012-06-13T01:52:10.132+01:00Da manifesta insuficiência das palavras para dizer seja o que for.</br><i>O que é ridículo, se pensarmos bem nisso. Uma história escreve-se com palavras, e parece idiota que nos sirvamos das palavras apenas para dizer que as palavras não servem para nada. E daí, talvez sirvam pelo menos para isso…</i></br></br>
A vela tremeluziu com algum embaraço, esforçou-se bravamente num derradeiro clarão, e extinguiu-se por fim num rasto de fumo e fracasso. O cavaleiro sem armadura soltou uma praga sonora, cujo teor exato se omite nestas linhas, mas que podemos adiantar tratar-se de uma expletiva cruamente escatológica. Em boa verdade, nada naquele passamento da vela justificava uma tão extemporânea evocação de fezes e latrina, o que não impediu que lhe soubesse bem soltar aquela praga. A vela não se destinava a iluminação, pois é sabido que os cavaleiros dos tempos modernos se alumiam com lâmpadas elétricas. Também não se tratava aqui de mezinha espiritual, círio prometido a divindades mortas ou aura convocadora de energias espirituais. A vela não servia realmente para nada, o seu fim nada veio terminar, nada além da cera que se consumira cedo de mais, tão rapidamente como a sua vida se consumira. Pensar nessa vida levou-o a repetir o palavrão, desta vez com mais sentimento.</br></br>
Merda para essa vida, e merda para todas as vidas que pudesse ter em vez dessa. Merda para a armadura inventada, para as invenções em que se desarmara, para a sua estupidez de inventar cavalarias e dragões e princesas e tavernas ruidosas onde cavaleiros sem temor bebiam a vitória sobre os dragões, cuidando que as princesas os não deixariam de aguardar, apenas para depois as buscarem enquanto cuidavam que as tavernas jamais cerrariam as suas portas. Merda para todas as vidas e romances e datas festivas, como se uma data pudesse tornar real o acontecimento que rememorava, como se fosse lógico comemorar e rir, como se fosse real viver ou morrer. Merda para tudo isso, e também para a vela que se apagou tão cedo, sem quase deixar memória de ter brilhado um dia, fazendo em torno de si uma escuridão tão estúpida como a luz que antes brilhara. Parecia-lhe tão pouco dizer assim merda, como se desistisse de fazer sentido, ou como se tivesse deixado de acreditar na possibilidade desse sentido, de algum sentido, de qualquer coisa que não fosse merda. As palavras nada diziam, e contudo o que haveria a dizer?</br></br>
O cavaleiro apagou todas as luzes em seu redor, mas não tentou voltar a acender a vela. No lusco-fusco dos raios de luar que se coavam pela vidraça empoeirada, arrumou a um canto as peças da armadura inútil. Assim empilhadas, faziam lembrar os restos de um velho frigorífico, daqueles que dizemos que já não se usam, mas que no fundo acreditamos que nunca se chegaram a usar. Estavam já enferrujadas, aqui e ali, mas isso não era nada de especial. Os pedaços da armadura ainda mal tinham começado a morrer.Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-15753019008764228082012-04-02T01:23:00.000+01:002012-04-02T01:24:06.185+01:00Interlúdio NegroAlgumas noites são mais difíceis. É curioso, pensa-se que vai ficando mais fácil com o decorrer do tempo, e talvez até fique, não sei. As coisas vão encaixando, umas menos que outras, algumas só encaixam mesmo com muito boa vontade, mas lá se vão convencendo os dias a fazer o seu sentido, alguma espécie de sentido, ou qualquer coisa que pelo menos se pareça com uma espécie de sentido. E enquanto os dias vão estando ocupados nesse fútil diagrama de uma existência pífia, tudo corre pelo melhor. Algumas noites, no entanto, são mais difíceis.<br /><br />É claro que foi má ideia cumprimentar o papa-formigas azul. Devia ter compreendido de imediato que algo estava errado quando o vi sentado sobre a minha secretária, de óculos encavalitados no nariz extravagante, tocando uma espécie de solo de xilofone sobre as cordas de um violino feito de pele humana. Ao fim de todo este tempo, tinha já a obrigação de saber que os papa-formigas nunca são azuis, e essa discrepância devia ter-me logo alertado. Talvez me tenha de facto alertado, não sei, talvez tenha sido eu que não prestei atenção à subtil anomalia, e que inconscientemente optei por achar aquilo tão natural como uma noite bem passada, tão normal como conseguir-se o que se deseja, tão corriqueiro como saber-se mesmo o que se deseja, e achar natural obtê-lo. Neste ponto, o papa-formigas interpretou um trecho particularmente difícil de uma ópera alemã, e eu deixei-me entusiasmar.<br /><br />O papa-formigas está morto sobre a minha secretária, e acho que foi o meu entusiasmo que o matou. Está cada vez mais azul, mas agora já não me entusiasma. Ou talvez ainda entusiasme, mas é difícil de dizer, porque me falta o ar. A atmosfera ficou pesada de repente, e creio que se esqueceram de lhe juntar oxigénio, ou então fui eu que me esqueci de como se inspira. Creio que estou também um pouco azul, mas não faz mal. Há noites azuis, assim como há dias de sol, e tudo isso finda mais tarde ou mais cedo. O violino continua a tocar uma melopeia fantasmagórica, que me arrepia os pulmões, e a pele humana que o reveste começa a apresentar largas manchas. Sinceramente, não sei o que faça com ele. Podia enterra-lo ao lado do papa-formigas, mas não creio que se calasse.<br /><br />E também pode ser que amanhã o violino se cale, e o papa-formigas volte a sorrir, e se esqueça de ser azul. Talvez as coisas normais e corriqueiras se lembrem de ser de facto normais e corriqueiras, e eu me torne também corriqueiro, e pareça um pouco normal. E o mundo vai parecer outra vez redondo, mas só pela manhã. Agora ainda é cedo para isso, o mundo ainda é escuridão, e parece-se muito com um dragão deformado, com asas de morcego cheias de rasgões e pele coriácea e reluzente, a escorrer uma baba da cor repugnante da noite. E algumas noites, de facto, são mais difíceis.Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6104059660670603739.post-42881181592552793962011-07-11T03:35:00.002+01:002011-07-12T01:21:23.461+01:00Balcão do Café.Uma Super Bock, claro, e talvez, não sei, um daqueles folhados. O objectivo era a cerveja, mas são horas de jantar, e o estômago vazio agradece decerto o folhado acrescentado à encomenda. Por entre a bebida e a mastigação, reparo numa mosca que se passeia pelo tampo de vidro do contador, e que circum-navega os círculos de cerveja deixados pelo copo transbordado. Sopro-a para a convencer a voar, mas ela não parece disposta a tal, é bem possível que leve já um grãozinho na asa.<br /><br />Outra cerveja, já sem o álibi alimentar, pois não me apetece comer mais folhados, e a mosca parece concordar comigo, quando esquiva as migalhas do pastel e submerge, de probóscide em riste, no lago ampliado da cerveja. Consumo a minha própria bebida enquanto ela mal fez mossa na sua, são estas as consequências de se pesar mais de uma centena de quilos, em vez de meros miligramas. Farto de cerveja, encomendo um brandy!<br /><br />A mosca descobriu o brandy, e caminha agora para ele, com aquele passo hesitante que o álcool de uso impõe ao espírito virado para a reflexão. Parece lançar contas à sua vida, sem que a soma lhe agrade particularmente. Supomo-la a pensar no moscardo com quem saiu duas ou três vezes, e que impulsivamente expulsou da sua vida, quem sabe se terá sido sensata. Ele bem mostrara não ser digno de confiança, mas a sua companhia divertia-a, não teria sido talvez melhor mantê-la, e o que é que eu estava a pensar, que me perdi agora? Num passo arrastado, a mosca adentra o círculo de brandy, que começa a percorrer num circuito degustativo. Farto-me de a contemplar, e dedico-me à televisão, que transmite um jogo de futebol. Farto-me ainda mais disso, e volto à mosca, em atenção a quem peço outro brandy.<br /><br />Agora sou eu que penso na vida, com todas as suas complexidades. Cada aspecto novo leva-me a beber mais um golo, e depressa a soma dos aspectos esgotou o cálice. O que sobrou está sobre o balcão, na forma de um círculo que a mosca pesadamente percorre. O meu espírito brinca ainda com a ideia de mais um cálice, mas verifico que exauri já os meus recursos, pelo que pago a conta e me preparo para sair.<br /><br />Lanço ainda um último olhar à mosca, que percorre sempre a mancha de brandy, como que a lembrar-me ironicamente que até para ser um bêbado é preciso ter dinheiro. Isso, ou ser um artrópode.Nuno Baptista Coelhohttp://www.blogger.com/profile/16692787054908619108noreply@blogger.com0