segunda-feira, 2 de abril de 2012

Interlúdio Negro

Algumas noites são mais difíceis. É curioso, pensa-se que vai ficando mais fácil com o decorrer do tempo, e talvez até fique, não sei. As coisas vão encaixando, umas menos que outras, algumas só encaixam mesmo com muito boa vontade, mas lá se vão convencendo os dias a fazer o seu sentido, alguma espécie de sentido, ou qualquer coisa que pelo menos se pareça com uma espécie de sentido. E enquanto os dias vão estando ocupados nesse fútil diagrama de uma existência pífia, tudo corre pelo melhor. Algumas noites, no entanto, são mais difíceis.

É claro que foi má ideia cumprimentar o papa-formigas azul. Devia ter compreendido de imediato que algo estava errado quando o vi sentado sobre a minha secretária, de óculos encavalitados no nariz extravagante, tocando uma espécie de solo de xilofone sobre as cordas de um violino feito de pele humana. Ao fim de todo este tempo, tinha já a obrigação de saber que os papa-formigas nunca são azuis, e essa discrepância devia ter-me logo alertado. Talvez me tenha de facto alertado, não sei, talvez tenha sido eu que não prestei atenção à subtil anomalia, e que inconscientemente optei por achar aquilo tão natural como uma noite bem passada, tão normal como conseguir-se o que se deseja, tão corriqueiro como saber-se mesmo o que se deseja, e achar natural obtê-lo. Neste ponto, o papa-formigas interpretou um trecho particularmente difícil de uma ópera alemã, e eu deixei-me entusiasmar.

O papa-formigas está morto sobre a minha secretária, e acho que foi o meu entusiasmo que o matou. Está cada vez mais azul, mas agora já não me entusiasma. Ou talvez ainda entusiasme, mas é difícil de dizer, porque me falta o ar. A atmosfera ficou pesada de repente, e creio que se esqueceram de lhe juntar oxigénio, ou então fui eu que me esqueci de como se inspira. Creio que estou também um pouco azul, mas não faz mal. Há noites azuis, assim como há dias de sol, e tudo isso finda mais tarde ou mais cedo. O violino continua a tocar uma melopeia fantasmagórica, que me arrepia os pulmões, e a pele humana que o reveste começa a apresentar largas manchas. Sinceramente, não sei o que faça com ele. Podia enterra-lo ao lado do papa-formigas, mas não creio que se calasse.

E também pode ser que amanhã o violino se cale, e o papa-formigas volte a sorrir, e se esqueça de ser azul. Talvez as coisas normais e corriqueiras se lembrem de ser de facto normais e corriqueiras, e eu me torne também corriqueiro, e pareça um pouco normal. E o mundo vai parecer outra vez redondo, mas só pela manhã. Agora ainda é cedo para isso, o mundo ainda é escuridão, e parece-se muito com um dragão deformado, com asas de morcego cheias de rasgões e pele coriácea e reluzente, a escorrer uma baba da cor repugnante da noite. E algumas noites, de facto, são mais difíceis.