domingo, 12 de outubro de 2008

O bolo de três andares.

Seria talvez um exagero, se disséssemos que as pupilas do garoto se dilatavam como pratos, maxime se afirmássemos que chegavam a atingir o diâmetro inaudito daquela portentosa obra de pastelaria. Mas o que não sofre dúvidas é que os círculos do olhar envolviam os círculos concêntricos do bolo, como se o rapaz pretendesse comer com os olhos aquela maravilha de natas e doce de ovos, delícia como jamais vira outra.

É preciso dizer que isto se passava durante a guerra, não interessa agora de que guerra se tratava. Perguntassem a um turista, e ele diria, num encolher de ombros, que se tratava de uma guerra qualquer, questionassem em vez disso o rapaz, e saberiam então que era a guerra, e isto ele diria por nunca ter visto outra, tal como jamais vira a paz. Não há muita coisa para ver numa guerra, e o que há é já demais, excesso de fumo, poeira, sangue e bocados de gente, e uma enorme carência de visões repousantes, garridos arco-íris sobre cascatas cristalinas, ou a neve apaladada de bolos capitosos. Aquele bolo, sem dúvida, fascinava o petiz.

A noiva apercebeu-se, com um sorriso, daquele amor indefectível que se estabelecera entre o garoto e o bolo, o seu bolo de casamento, imponente nos seus três andares. Fosse porque o seu coração feminino lhe soprava uma gentileza, fosse por saber bem o que era passar privações, o facto é que se acercou bondosamente dele, e convidou-o a ficar, até que a cerimónia se concluísse, e o bolo fosse partido. Poderia então saborear a sua justa parte, que, confidenciava-lhe ela, tinha recheio de morangos.

Os rituais que se seguiram foram longos, e chatos, para dizer a verdade, mas o rapaz permanecia enlevado, só com o grande bolo no seu espírito. No exterior soavam tiros, mas isso era apenas mais um som do quotidiano, ao qual já ninguém ligava muito. Após o que pareceu uma eternidade, chegou por fim o momento de cortar o bolo. Com a respiração suspensa, o miúdo observou cada passo da noiva, que se aproximava com a espátula, como se venerasse no templo uma vestal. A antecipação tornara-se quase dolorosa, quando a faca finalmente tocou no bolo, que explodiu.

Não vale a pena descrever o caos subsequente, as inúmeras lacerações causadas pelos pregos que a bomba maldosamente projectou, os corpos esfacelados e mutilados que sangrentamente rodeiam o rapaz, ele que não tem olhos para outro vermelho que não seja o recheio de morangos do bolo. Por entre cadáveres descompostos, lambe os pedaços de creme que lhe recobrem a cara, e busca entre os destroços outros bocados suculentos, que vai mordiscando.

A delegação da ONU que inspeccionou aquele local não queria acreditar naquele milagre: como era possível que uma das principais vítimas de um atentado daqueles, uma bomba recheada de ferragens sortidas, sobrevivesse incólume? O rapazito não teve dúvidas, Todos pensavam na bomba, sabe, mas eu só pensava no bolo. Aquele bolo era tudo para mim, e eu sentia cada pedaço de pão-de-ló, cada colher de natas ou ovos. Para mim, aquele bolo era inofensivo, e as coisas, como sabe, acabam sempre por ser aquilo que nós cremos que elas são. Como este bolo, por exemplo. Lembrando-se das suas boas maneiras, acrescentou delicadamente, É servido?

Aniversário.

O bolo era redondo. Isto nada tem de especial, e quase não valia a pena gastarmos espaço para o dizer, muitos bolos há que são redondos, será talvez a maioria deles a cair neste caso. Registe-se todavia que o bolo era redondo, redondo e verde.

A cor verde, que predominava na cobertura, pretendia representar um verdejante pasto, onde pequenos novelos de lã retouçavam bucolicamente. Havia ainda uma casa, modesta mas bem caiada choupana de pastores, e as velas, é claro. São muito importantes, as velas, num bolo de aniversário.

O miúdo sabia já contar, e certificou-se conscienciosamente de que oito farpas de cera colorida embandarilhavam o bolo, o tal bolo redondo dos seus oito anos. Trata-se de uma idade importante, pela transição que se dá, de uma criança de sete para um homem de oito. Em certas tribos de outros continentes, o facto é assinalado com uma caçada ao urso ou ao javali, por cá limitamo-nos a soprar oito velas, espetadas num bolo que por vezes é redondo.

O sopro daqueles jovens pulmões lançou na escuridão o aplauso que finalizava a tradicional canção de parabéns, mas ainda se acendiam as primeiras luzes quando o miúdo quis repetir o ritual.

Também isto estava previsto, e o pai preparou-se para reacender os oito lumes. Foi contudo surpreendido pela acção do rapaz, que retirou da algibeira quatro amarrotados tocos de vela, os quais cravou no bolo, um pouco de esguelha. O pai acendeu sem um comentário as velas todas, e de novo se repetiu a canção, e o sopro final.

Quis no entanto o pai esclarecer melhor aquela questão das quatro velas, mas o petiz nada de estranho via nisso, eram os parabéns da irmã, que completava nesse mesmo dia doze anos. Quando lhe disseram que isso não era assim, que era ele o mais velho, retorquiu com impaciência, Não é isso, pai, estou a falar da mana, a que não nasceu. A que vocês não quiseram que nascesse, lembras-te?

É certo que o pai compreendeu, mas como podia o miúdo saber de algo que todos ignoravam, e que se passara quatro anos antes de ele ter vindo ao mundo? Tentou debilmente dissuadir o rapaz, mostrar-lhe que não, que nenhuma irmã existia, mas a criança sorriu com alguma tristeza, e disse, É claro que existe, pai, como querias tu que eu, com oito anos, conseguisse soprar sozinho doze velas?

A história da carochinha.

Pasmado face a uma folha de papel branco, sem atinar com fábula ou conto com que a enchesse, decidi contar, para variar, a história da carochinha.

A boa da carochinha encontrou uma moedinha, e resolveu casar-se. Isto, pelo menos, é o que nos afiança o conto original, e cada qual se avenha agora para perceber onde raio pretende chegar uma barata na posse de uma quantia que não ultrapassa os dois euros. Disto fazendo tábua rasa, lá foi a carocha lançar o pregão em que oferecia o corpinho ao manifesto.

Segue-se neste ponto uma improvável corte de machos inadequados, e quer o autor convencer-nos de que o burro (o burro, santo Deus), não reúne as condições para casar com a barata porque a sua voz é muito feia. A sua voz? Não haverá aí outro problema? Quero dizer, vocês já viram um burro?

Vem em seguida a cabra, proposta de lesbianismo consentida para não terem de lhe chamar o aumentativo masculino do mesmo nome, e continua a ser o registo vocal o problema de maior monta. Começa então o leitor a questionar-se, será que o autor sabe de facto o que é uma carocha, e que tamanho tem?

Desfila depois um cortejo de semelhantes inanidades, que culmina quando o artrópode elege uma façanhuda ratazana como o amor da sua vida, lançando deste modo em espasmos de dolorosa hilaridade todos aqueles que contactaram já com um destes roedores. A barata sente-se contudo à altura do desafio, mas acaba por ver os seus planos transtornados quando o citado transmissor de doenças infecciosas, naturalmente interessado em comida mais sólida do que um mero insecto, se debruça e cai no caldeirão, onde é eventualmente cozinhado.

E o insecto fica a lamentar-se, em vez de se alegrar por ter escapado de boa ao triste destino de, além de barata, ficar conhecida de todos como “Dona Rata”. E parece que acabou a varrer melancolicamente a casa, triste caçada a um pó perfeitamente inocente de todos estes eventos.

A princesa e a ervilha – fábula revista.

Para temperar um pouco a seriedade das coisas, proponho para hoje uma história de fadas, pour rire un peu.

Era uma vez uma princesa muito sensível, tão sensível que conseguia detectar uma simples gota de água no garrafão de onde diariamente emborcava os seus cinco litros de carrascão. A sua pele era tão delicada que certa noite, quando o porteiro do condomínio onde vivia deixou por incúria uma ervilha esquecida sobre o balcão da entrada, ela foi incapaz de pregar olho toda a noite, no seu apartamento do último andar. Bem, é certo que estava a braços com uma séria infecção urinária, na altura, mas o caso não deixa de ser fantástico.

A sua sensibilidade era lendária em todo o reino, e quando um anão um pouco vesgo lhe apareceu lá em casa, gabando-se de saber fiar ouro a partir de palha, sentiu logo que o gajo queria era afiambrar-se com as pratas que encontrasse no duplex. A perspicácia da princesa foi muito gabada, e todos concordaram que qualquer outra pessoa se teria deixado ludibriar pela pérfida manha da diminuta criatura.

No andar por baixo da princesa, vivia um gigante que tinha sete filhas, e uma galinha que punha ovos normais, caso que se tornara raríssimo por aquelas bandas, desde o acidente com o reactor nuclear. As sete filhas não eram bem sete, nem sequer filhas dele, eram mais um gato coxo de uma pata e três canários. O gigante, que com os sapatos calçados tinha quase um metro e noventa, decidiu um dia casar com a princesa, e foi-lhe bater à porta.

A pálida donzela corou ao ouvir a proposta do vizinho. A palidez devia-se sobretudo a uma ressaca da noite anterior, quando perdera um pouco o domínio dos eventos, dando azo a que três mânfios constatassem em primeira-mão como ela era sensível. Ainda um pouco enevoada pelos excessos da véspera, firmou-se melhor no gigante, e respondeu-lhe que não.

O gigante disse, Fa, Fe, Fi, Fo, Fu, que é uma coisa que os gigantes gostam muito de dizer, embora ninguém saiba exactamente porquê, e perguntou-lhe se o não era definitivo. Ela respondeu que sentia muito, porque era muito sensível, mas a resposta era mesmo não. Ele agradeceu, e deixou-a.

E o gigante, depois disso, viveu feliz para toda a vida.