sábado, 1 de setembro de 2007

Canonização.

(Só para começar a pôr alguma coisa).

Reza a lenda, uma dessas lendas – porque, nisto de lendas, ele há sempre muitas –, mas reza esta, concreta, que certo senhor fidalgo, num desses dias de antanho, se viu, ao entrar numa igreja, assediado por um petiz que lhe pedia esmola. Fosse por superstição do lugar sagrado, ou apenas por se sentir ditoso nesse dia, o facto é que substituiu a sua reacção natural, que seria a de repelir o garoto atrevido, por um desacostumado derramar de pecúnia. Deixando de lado o maravilhado infante, avançou pela nave, e constatou, transportado, que a imagem de Jesus lhe sorria, em jeito de aprovação. Operou-se, assim, uma grande transformação na sua vida.

Eu não contesto a lenda, nem fujo da ideia de que Jesus se lembre assim de sorrir a um pecador, no seu inusitado rasgo de caridade. Argumento talvez que, por essa lógica, ele se desfaria em gargalhadas de prazer, de cada vez que contempla o meu filho, ou outro qualquer anjo da mesma idade. Que diabo, eu faço-o, e não conto que o governo venha a pendurar a minha efígie sanguinolenta nas salas de aula, em obediência a uma velhíssima determinação do extinto Ministério dos Negócios Eclesiásticos, como símbolo do amor inexpressável de Deus (de resto, se para simbolizar o amor de Deus, é mister estar todo escavacado, então, bota inexpressável nisso). Mas pronto, Jesus é Jesus, Ele lá sabe o que faz, só a Ele compete escolher a quem há-de sorrir, e eu não tenho nenhuma querela com isso.

Não, a única coisa que me faz espécie, é que esse género de evento não alcance jamais ser aceite, nem fazer escola, a menos que suceda em locais consagrados, com símbolos e figuras autorizados, e em moldes consensuais. Cristo sorri numa igreja? Milagre, suave milagre! Deus surge, refulgente, em Ourique? Bravo, o Céu é por nós! Mas, sucede depois ao senhor António, grosso do tabaco e das libações da véspera, escarrar no passeio público. O escarro notório, esverdinhado, repelente, forma no seu entender uma imagem reveladora, quase uma mensagem divina. Como? Abaixo o senhor António, cadeia, e já, para esse herege, esse porco imundo que assim mistura às coisas santas a impiedade da sua emporcalhada expectoração. Ora, eu confesso que não sei, realmente, em que difere a escarreta do senhor António, que forma uma imagem, dessa outra imagem, escarrada a pincel sobre tela, de Jesus Cristo Nosso Senhor, nosso Deus e nosso Salvador.

Vem tudo isto a propósito da minha experiência metafísica de uma noite recente. Não posso, em boa verdade, e à face dessa igreja que é ainda maioritária entre nós, chamar-lhe uma experiência religiosa. Nem eu me encontrava em estado de graça, nem o local (a minha modesta cozinha), era um sítio consagrado, ou, pelo menos, um aceitável deserto, desses que propiciam eremitérios, e visões miraculosas. Quero dizer, eu ainda hoje mantenho que o aposento em causa apresenta estranhas e indesejáveis semelhanças com o deserto, sobretudo quando se pretende, por exemplo, comer alguma coisa, mas custa-me a crer que a Santa Madre Igreja aceitasse tão pedestre argumento. Donde, nem santo, nem altar. Mas, era pelo menos, todavia, consagrada a miraculosa imagem? Nem isso, helás! Tudo o que eu vi nessa noite foi um homem triste, um homem falido e destroçado, um homem perdido, acabado – onde só havia, simplesmente, um mero saco de batatas.

O homem metia dó. Agachado sobre o seu próprio destino, apoiava à parede fria o ombro vergado, a caveira derrotada. Tendo sido eu próprio a comprar, a trazer, a colocar ali aquele saco de batatas, fácil me foi determinar que o pescoço e a cabeça não passavam de um mero efeito óptico da sombra da pega, e que o corpo era apenas uma ilusão, nascida da disposição fortuita dos tubérculos. O meu homem triste era apenas, feitas as contas – um monte de batatas.

Fez-me contudo pensar – tal como o outro, o da cruz, nos faz rezar. São, portanto, igualmente úteis, e essa é a sua identidade. Sobre as diferenças com que o mundo os separa, julgo que não vale a pena alongar-me. Já disse demais, ou, então, nunca direi o bastante. Seja como for, nenhum conselho que eu aqui pudesse verter seria útil, excepto o de recomendar, vivamente, e com carácter de urgência, o cultivo da batata.