domingo, 9 de maio de 2010

Mais passarada.

O Melro:

Já muitas vezes me têm ocorrido, naqueles momentos em que o pensamento vagueia ocioso como um sem-abrigo numa tarde de Verão, os inúmeros e inquietantes pontos de semelhança que existem entre mim e o melro. Para começar, temos ambos penas pretas e um bico amarelo (sobretudo o melro). Também voamos ambos, um com as asas da imaginação, outro com asas mesmo verdadeiras, mas tudo isso é voo. É claro que há pontos de divergência, como seja o facto de se conhecerem poucos exemplares de melros que pesem mais de oitenta quilos, mas na essência somos muito semelhantes.

Gosto sobretudo de ver o melro levantar voo. Não vale a pena pormo-nos a olhar para um melro e esperar de imediato um bater de asas de pássaro liberto. Não, o melro demora-se nos seus passeios e deambulações, pica aqui e esgravata acolá, até que vem a hora de se alçar pelos ares. Quando isso se dá, sabemos imediatamente que chegou o momento do voo. Torna-se por demais evidente o instante em que ele se vai erguer num bater turbulento de asas, e que direcção tomará. É igualmente evidente ser o melro o único que tudo isso ignora, pelo que parte sempre num voo espantado de quem não estava nada à espera que aquilo lhe acontecesse, não aqui e agora, pelo menos, e sem ter sequer uma ideia de qual o seu destino. Aprecio isso no melro, é sempre bom não estarmos sozinhos em assuntos destes.

Outro ponto em comum é que a maioria das pessoas que apreciam melros prefere apreciá-los à distância. Um melro a passear pelo jardim é uma bonita visão, mas um melro empoleirado no ombro é uma ideia inquietante, a convocar o receio de cagadas diversas. E não deixam de ter razão. Um melro que se aproxime demais é bicho que convém enxotar.

O melro é um animal interessante sem ser bonito, intrigante sem ser interessante, e irrelevante o suficiente para que não valha a pena perdermos tempo a intrigarmo-nos. Eu gosto de melros, e não me espanta que os haja com mais de oitenta quilos.