domingo, 22 de julho de 2012

Casa de Sombras

A porta, de madeira rachada e escurecida pelo tempo, parecia negrejar no fundo da viela que um candeeiro se esforçava em vão por iluminar, mas que lograva apenas projetar uma fantasmagoria de sombras nas paredes onde a humidade escorria desde tempos imemoriais. O vento sibilante gelava-me a alma e os ossos, e já me parecera ouvir passos, murmúrios e pios de mochos. Decidi entrar.

A casa era velha, muito velha. O sobrado, de tábuas corridas onde o desgaste do tempo abria frestas, tinha aquela solidez oca de tempos que já não são, como se não tivesse sido feito para suportar o volume prosaico de gente moderna. O inevitável papel de parede, de um padrão verde de ramagens, descascava em todo o lado, e a mobília era soturna, mesas pesadas e sérias, armários de patriarcal dignidade, e cadeiras empertigadas e altivas. Um velho louceiro guardava a porta da sala, arranhado e gasto já, veterano de antigas guerras que lograra manter uma dignidade tão fora de moda como os seus torcidos e tremidos. A casa parecia assombrada, e sobretudo mal-assombrada, pensei.

O corredor, opressivo e sombrio, habitado de sombras perversas, desembocava numa escada larga e escarpada, que subi com o coração pesado. Por certo que não era senão a minha imaginação que conjurava aquele ominoso bater de asas coriáceas, como se revoadas de morcegos se indignassem à minha passagem. Entre rangidos dos degraus gastos, atingi o patamar superior, e entrei no primeiro quarto que se me deparou. Tal como no resto da casa, o pó recobria a madeira seca dos móveis, o verdete das ferragens, e as manchas do grande espelho de toucador. Era um espelho imponente, que se pressentia ter refletido na sua época figuras que bastariam para contar uma história recheada de toiletes e vestidos de baile e casacas de ópera, mas que agora só refletia a imensidão quieta de uma cama em desuso, e um fantasma. Decidi que se tratava apenas do meu vulto, que ali não destoava, aquilino e pálido, corcovando um pouco. Já seduzido pela atmosfera enfeitiçada, continuei a explorar, e fui dar ao escritório.

Uma vasta escrivaninha suportava os velhos utensílios de escrita, a pena e o tinteiro e o mata-borrão, o selo e o lacre indispensáveis. Mas o tinteiro estava vazio, a pena não tinha aparo, e o lacre era um simples pedaço de plástico. A um canto, meio escondido, destoava um computador que era apenas velho, sem ser antigo.

Que desilusão! A escrivaninha era de contraplacado. Os imponentes móveis, vistos de perto, mostravam os tubos de alumínio que os enformavam, e que davam suporte às chapas de material barato, imitação de madeira feita em mau plástico. O espelho era feito numa matéria sintética, mesquinha, e as tábuas do soalho não passavam de linóleo. A casa era rasca, vil e falsa, e mesmo o pó que a cobria não caíra do alto dos tempos, mas da broca de um berbequim furando estuque em mau estado. As sombras não eram fantasmas – eram só falta de luz. Saí da casa, sabendo que saía de mim próprio, pois já não podia viver dentro de mim. O gótico da minha casa não era o decrépito dos tempos. A casa só estava decrépita porque não prestava, e nem tinha qualidade que justificasse fazer-lhe obras.

Estou sentado na viela, e o chão está húmido. Gostava de ter trazido comigo uma das cadeiras, mas não fui capaz. De resto, era provável que se partisse se a tentasse usar. Não há sombras de fantasmas, não há mistério ou ecos de romance. Há paredes nuas e escalavradas, e uma porta sem serventia. A penumbra desapareceu, e agora há só escuridão. E a chuva, que continua a cair.