quarta-feira, 13 de junho de 2012

Da manifesta insuficiência das palavras para dizer seja o que for.


O que é ridículo, se pensarmos bem nisso. Uma história escreve-se com palavras, e parece idiota que nos sirvamos das palavras apenas para dizer que as palavras não servem para nada. E daí, talvez sirvam pelo menos para isso…

A vela tremeluziu com algum embaraço, esforçou-se bravamente num derradeiro clarão, e extinguiu-se por fim num rasto de fumo e fracasso. O cavaleiro sem armadura soltou uma praga sonora, cujo teor exato se omite nestas linhas, mas que podemos adiantar tratar-se de uma expletiva cruamente escatológica. Em boa verdade, nada naquele passamento da vela justificava uma tão extemporânea evocação de fezes e latrina, o que não impediu que lhe soubesse bem soltar aquela praga. A vela não se destinava a iluminação, pois é sabido que os cavaleiros dos tempos modernos se alumiam com lâmpadas elétricas. Também não se tratava aqui de mezinha espiritual, círio prometido a divindades mortas ou aura convocadora de energias espirituais. A vela não servia realmente para nada, o seu fim nada veio terminar, nada além da cera que se consumira cedo de mais, tão rapidamente como a sua vida se consumira. Pensar nessa vida levou-o a repetir o palavrão, desta vez com mais sentimento.

Merda para essa vida, e merda para todas as vidas que pudesse ter em vez dessa. Merda para a armadura inventada, para as invenções em que se desarmara, para a sua estupidez de inventar cavalarias e dragões e princesas e tavernas ruidosas onde cavaleiros sem temor bebiam a vitória sobre os dragões, cuidando que as princesas os não deixariam de aguardar, apenas para depois as buscarem enquanto cuidavam que as tavernas jamais cerrariam as suas portas. Merda para todas as vidas e romances e datas festivas, como se uma data pudesse tornar real o acontecimento que rememorava, como se fosse lógico comemorar e rir, como se fosse real viver ou morrer. Merda para tudo isso, e também para a vela que se apagou tão cedo, sem quase deixar memória de ter brilhado um dia, fazendo em torno de si uma escuridão tão estúpida como a luz que antes brilhara. Parecia-lhe tão pouco dizer assim merda, como se desistisse de fazer sentido, ou como se tivesse deixado de acreditar na possibilidade desse sentido, de algum sentido, de qualquer coisa que não fosse merda. As palavras nada diziam, e contudo o que haveria a dizer?

O cavaleiro apagou todas as luzes em seu redor, mas não tentou voltar a acender a vela. No lusco-fusco dos raios de luar que se coavam pela vidraça empoeirada, arrumou a um canto as peças da armadura inútil. Assim empilhadas, faziam lembrar os restos de um velho frigorífico, daqueles que dizemos que já não se usam, mas que no fundo acreditamos que nunca se chegaram a usar. Estavam já enferrujadas, aqui e ali, mas isso não era nada de especial. Os pedaços da armadura ainda mal tinham começado a morrer.