Um auto-retrato, em traços largos...
No mágico anfiteatro que por igual entretém miúdos e graúdos, triunfando sob a feérica iluminação multicolor, o palhaço domina e simboliza o circo. Em seu redor perfilam-se acrobatas e malabaristas, domadores e feras enjauladas, tudo o que inspira admiração e respeito, temor e reverência, mas o palhaço faz rir. Ninguém gosta particularmente do palhaço, mas toda a gente gosta de rir.
Cada pirueta suscita uma gargalhada, tem espertezas divertidas e fracassos hilariantes. Agora corre pela arena, perseguido pelos comparsas que disparam pistolas de estalinhos, sob cujas balas imaginárias se vai estorcendo em esgares de dor grotesca e caretas patéticas. Nas bancadas, um miúdo inquieta-se, mas logo o tranquilizam, os palhaços são só para rir, não são para levar a sério. Um estalinho mais forte, ressoando num eco mais férreo, pinta uma nódoa vermelha no fato do palhaço, logo abaixo da omoplata.
O trabalho do palhaço fica agora mais fácil, já não precisa de esforço para produzir careta após careta, e as gargalhadas aumentam. O miúdo volta a sobressaltar-se quando o vê cair e rebolar no chão, sobressalto de resto escusado, que bem se vê que o palhaço está só a brincar, como sobejamente provam os comparsas que o cercam, fingindo moê-lo de pauladas. Um silêncio hesita ainda pela tenda, logo no fim do acto, quando o palhaço se deixa ficar caído, e o pai do miúdo aborrece-se, aquilo está a arrastar-se mais do que devia, já se passaram minutos sem que nada fizesse rir. Foi contudo falso alarme, o palhaço rola ainda, ergue as pernas ambas, e contorce-se noutra pirueta. O respeitável público levanta-se e sai, comentando os leões e os trapezistas, os números de qualidade. Um dos miúdos quer ser trapezista quando crescer, e quantos adultos admiram, muito no segredo do seu ego, a glória e o glamour dos domadores. Vão além disso bem-dispostos, por qualquer razão que pouco importa.
Tal como não importa realmente de onde veio a bala que prostrou o palhaço. Há sempre balas na vida de um palhaço, há sempre dor para além do riso, mas o riso está lá para que outros esqueçam a dor, tal como as lantejoulas estão no fato para disfarçar o sangue, e é por isso que os palhaços não sangram. Os palhaços esvaem-se em lantejoulas, enquanto choram às gargalhadas.
O palhaço lá está prostrado, na arena obscurecida. Já só se contorce com a alma, que gira em piruetas tontas pelos labirintos da dor. O hábito já rotineiro fá-lo estancar a ferida, enquanto se prepara para um curto repouso de si mesmo. Curto, necessariamente curto, que o espectáculo seguinte não pode esperar. Já no exterior da tenda se acotovela a próxima leva de espectadores, que vão ao circo para admirar o mágico e os equilibristas e o elefante treinado, mas que não prescindirão de rir do palhaço.
E com toda a justiça, pois vale a pena ir lá só para o ver. É de facto impagável, aquele palhaço.