A Cotovia:
Em toda esta série de posts de carácter marcadamente ornitológico, ressalta de súbito uma omissão estranha e imperdoável. Refiro-me, como é evidente, à maviosa e maravilhosa cotovia, uma das mais prodigiosas criaturas da natureza. Tomemos então a pequena ave nas nossas mãos, e falemos um pouco sobre ela.
É fácil tomar a cotovia nas mãos: é um pássaro pequeno e terno, que se afeiçoa à palma da nossa mão, onde se deixa ficar aconchegado. Que não se tome isto, todavia, como indício de um carácter submisso. A cotovia tem uma forte personalidade, tem ideias muito próprias, e só se submete quando assim o decide.
Astrologicamente, uma das uniões mais interessantes que podemos encontrar entre aves é aquela que se dá entre a cotovia e o melro. Com efeito, o ciclo de postura do melro faz com que todos os seus exemplares nasçam sob o signo da Girafa Mijona. Já a cotovia, reproduzindo-se em épocas diferentes, descobre a luz do dia naquele momento tão especial do ano, quando Saturno se encontra na constelação do Urso Barnabé, mas mortinho por se pôr a andar dali para fora, ainda que lá deixe os anéis. Não é preciso perceber muito de astrologia para ver de imediato toda a multidão de contrastes e semelhanças de que estas criaturas são capazes, quando se juntam.
A cotovia, já aqui o sugerimos, é uma ave de carácter complexo e intrincado. Pode aninhar-se na nossa mão num momento, e alçar um voo sustentado a bicadas no momento seguinte. Vemo-la voar para longe de nós, e a mágoa da sua partida dói mais que todas as bicadas. Ficamos aturdidos a olhar para as mãos vazias, vazios nós mesmos do canto de todos os pássaros. Mas se a cotovia volta, a maravilha do momento sara de pronto as nossas feridas, e rendemo-nos a esse canto que nos encanta, e afagamos avaramente a bela ave, jurando nunca mais permitir que tal volte a acontecer. Mesmo sabendo que vai acontecer.
Quem tem uma cotovia não se preocupa com essas minudências. Quem tem uma cotovia sabe o que tem, e sabe que não precisa de mais nada.