sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Os corvos

No monturo de mim pousam corvos em bando. Negros e sinistros, soturnos e ferozes, desfazem com bicos férreos a lixeira do que sou. Estes retalham com método o fígado, aqueles arrancam pedaços de pulmões que já pouco valem, e outros, tantos outros, encarniçam-se sobre o coração sem lhe dar repouso. Os órgãos imprestáveis retorcem-se, sangram, e pedem um socorro que não virá jamais.

Contra tamanho bando tenho apenas uma lâmina, instrumento pobre e lastimável para tão momentosa tarefa. Os cortes sangrentos não os alcançam, e apenas logram distraí-los por momentos breves, demasiado breves. Urge cortar mais fundo, penetrar a carne já putrefacta que reveste a estrumeira onde eles se refastelam.

Ainda estou longe, muito longe, mas vou chegando mais perto. A lâmina entra melhor na carne, o sangue peçonhento escorre, e os corvos quedam-se num susto mais ponderado. Um dia chegarei finalmente a eles, e num golpe súbito destroçarei o bando maligno. Então, poderei por fim apodrecer em paz...