Há que enterrar os nossos palhaços, se queremos manter um ar sério... até os elefantes, antes de morrer, têm o cuidado de o fazer em sítio adequado...
sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
Quero mais!
Quero mais, quero muito mais. Quero mais de mim, quero mais dos outros. Sobretudo dos outros. Quero que sejam mais do que são, quero que se tornem naquilo que podem ser. Não peço, muito menos exijo. Exigir, só exijo de mim, porque nunca me bastarei. Não quero ser amanhã o que sou hoje, porque sei que posso ser mais do que sou agora.
Dos outros, nada peço. Sei que são muito, sei que valem muito, pelo menos os que eu conheço, digo, os que quero conhecer. Sei que são mais do que eu mereço, e tantas vezes mais do que eu poderei ser. Mas enquanto eu estiver por perto, quero que eles sejam mais do que são. Por eles, por tudo o que ainda podem alcançar, por tudo o que podem crescer. E se eu puder ser degrau nessa escada que eles ainda podem subir, serei talvez um degrau mais alto do que fui ontem. Porque a felicidade do que somos não nos pode impedir de lutar, de melhorar, de ser mais ainda.
Se à minha volta vir gente caída, quero estar de pé para lhes dar a mão. A mesma mão que espero me estendam quando for eu a cair, quando as forças me faltarem, quando a vontade de permanecer se instalar. Porque quero ser mais do que sou, cercado de amigos que não se instalam nem me deixam instalar. Se amanhã morrer igual ao que sou hoje, terá sido bastante. Mas se viver, quero ser mais e melhor. Valha ou não a pena.
terça-feira, 28 de outubro de 2014
Reconstrução
Tantos anos longe de mim! Três décadas ausente de um corpo vazio, que apenas parecia habitado. Regressei há três anos, e ainda não consegui pôr ordem na casa. Não se recupera uma vida começando do zero, porque essa vida foi de facto vivida, ainda que na minha ausência, e o ponto zero já está muito longe. A casa não está vazia, e os móveis em cacos não podem ser ignorados.
Trinta anos em que o meu corpo viveu só, e por si só decidiu e fez, e agora que voltei tenho de pôr em ordem todo o caos que ele deixou. Que eu deixei, porque de nada adianta dizer que não estava cá quando tudo foi dito e feito. Tenho de aprender a ser, mas nunca ignorando o que fui, responsabilidades a que não posso fugir.
Três anos difíceis, com tanto trabalho que só eu pude fazer, que de nada adiantaria explicar aos que julgaram que estive sempre cá, que nunca parti, que não houve regresso. Trabalho tão complexo, tantas vezes mal feito por o não ter sabido fazer melhor, por talvez não ser possível fazê-lo melhor. Trabalho talvez vão e fútil, mas que está quase completo.
Por fim a casa começa a parecer um lar, por fim começo a habitar em mim mesmo. Ainda falta muito, mas começo por fim a saber quem sou. Preste ou não preste, será sempre quem eu sou. E serei por fim alguma coisa.
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
Parado em queda livre
No fim da estrada ficava o penhasco. O homem ainda não sabia disso, e percorria sem preocupações a estrada, essa estrada que terminava num penhasco que não existia, tal como nenhum penhasco existe.
Dá jeito por vezes falar de penhascos, ou até escrever umas palavras sobre eles, mas isso não os faz existir. Nenhum penhasco existe, como não existe o frio ou a escuridão. O frio é só a ausência de calor, a escuridão não passa da ausência de luz, e um penhasco é apenas a ausência de algo a que nos possamos agarrar, de um solo onde possamos assentar a nossa própria existência. Podemos verificar se a quantidade de calor é excessiva ou insuficiente, discutir se a luz é escassa ou se é demasiada, e constatar se estamos bem seguros ou em desequilíbrio. Mas o vazio não se contabiliza, e sobre o vácuo nada há a dizer, e muito menos a fazer.
O homem chegou ao fim da estrada e caiu no penhasco. Melhor dizendo, caiu nessa não existência onde nada havia, fosse luz ou calor ou um mundo que o pudesse segurar. A queda foi longa e vazia, e também ele foi deixando de existir.
Não soube se chegou a tocar o fundo, nem sequer se haveria esse fundo, ou em que estado ele próprio lá chegaria. O grande nada que é o penhasco continuou a existir, vazio como sempre. O nada não ocupa espaço, e ele também já não.
segunda-feira, 15 de setembro de 2014
Desabafo
Isto vai acabar mal. Estou farto de dar voltas ao assunto, de tentar arranjar alguma maneira de poupar os outros, mas as paredes fecham-se à minha volta. E só uma coisa é certa: doa a quem doer, isto vai acabar mal.
sexta-feira, 12 de setembro de 2014
Os corvos
No monturo de mim pousam corvos em bando. Negros e sinistros, soturnos e ferozes, desfazem com bicos férreos a lixeira do que sou. Estes retalham com método o fígado, aqueles arrancam pedaços de pulmões que já pouco valem, e outros, tantos outros, encarniçam-se sobre o coração sem lhe dar repouso. Os órgãos imprestáveis retorcem-se, sangram, e pedem um socorro que não virá jamais.
Contra tamanho bando tenho apenas uma lâmina, instrumento pobre e lastimável para tão momentosa tarefa. Os cortes sangrentos não os alcançam, e apenas logram distraí-los por momentos breves, demasiado breves. Urge cortar mais fundo, penetrar a carne já putrefacta que reveste a estrumeira onde eles se refastelam.
Ainda estou longe, muito longe, mas vou chegando mais perto. A lâmina entra melhor na carne, o sangue peçonhento escorre, e os corvos quedam-se num susto mais ponderado. Um dia chegarei finalmente a eles, e num golpe súbito destroçarei o bando maligno. Então, poderei por fim apodrecer em paz...
terça-feira, 9 de setembro de 2014
Sepulcro
Quatro paredes sem porta nem janela, claustro desprovido de água e comida e amor. Quatro paredes e uma faca, brinquedo que nada mais é. Uma faca é fácil demais quando há tanta coisa para pôr em ordem, papéis e burocracias e toda uma vida para arrumar. E leva tanto tempo, meu deus! Tanto tempo!
Quando terá fim este túnel desordenado? Quando poderá a faca deixar de ser um brinquedo? Quando cumprirá ela a sua função de entalhar as quatro paredes de uma caixa mais pequena, mais adequada às minhas dimensões? Eu não ocupo assim tanto espaço, e perco-me de mim na vastidão destas quatro paredes que nunca terão outra saída.
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
Naufrágio
Como falar de amor quando é vedado falar de amor? Não sei. Pela primeira vez, não sei o que escrever. Há por aí milhares de textos de amor infeliz, mas são decerto falsificações, escritas por gente que inventou tudo aquilo sem o ter vivido. O amor malogrado não é eloquente, é sufocante.
terça-feira, 3 de junho de 2014
Adubo
Memento, homo, quia pulvis es, et in pulveram revertiris. E já será tarde, por mais cedo que venha a ser. O estrume quer-se na terra, a fazer crescer as plantas. Estrume com braços e pernas e bocas e frases de papo, estrume que anda e fala e enoja quem cheira as suas palavras, não é apenas uma aberração; é um atentado à saúde pública. Não incomodem por minha causa o coveiro, a quem o trabalho não compete; chamem antes um jardineiro, e dê-se o assunto por findo.
segunda-feira, 2 de junho de 2014
Epitáfio
Se eu morresse não escrevia mais, e era um descanso para todos. Se eu morresse era um descanso para todos, com a vantagem de não terem mais de me ouvir ou ler ou aturar. Haveria chatices, claro – participações de falecimento e telefonemas de condolências, e o sempre dispendioso aborrecimento de dispor de um corpo que já não sabe sair do caminho quando incomoda, e que nem se lembra mais de se lavar sozinho, e bem precisa, que já começa a cheirar mal, ainda para mais com o calor que faz, que pena não caber no frigorífico, resolviam-se dois problemas de uma assentada, ao preço a que está a carne. Mas eram chatices para os outros – o morto é o único que ninguém importuna num funeral, e assim é que deve ser. Quem já está morto não devia ter de aturar chatices, mesmo que ainda cá ande.
quarta-feira, 16 de abril de 2014
Pedra
Por onde ando, é pedregoso o terreno. Deserto que me contém, feito de poeira e calhaus e aridez. A pedra é poeira que assentou e endureceu, devagarinho, durante muitos anos. Não tem mistério, é só pó e nada, um nada seco e duro.
Fora do deserto, nada há senão pedra. Pedra lisa e dura, cintilando num brilho de arestas cortantes. A pedra é lava que arrefeceu, rigidez do que um dia foi fluido. Não tem mistério, é apenas fogo que já não arde, e que tudo arrefece em sua volta.
E eu vou sendo de pedra também, sedimentando a cada maré que vasa e não retorna. Só este coração granítico continua a bater, e não tem sequer a decência pétrea de se imobilizar. Para que bate ele, o canalha?
(isto daria um epitáfio bonito se eu acaso morresse hoje. Palavras que o cinzel insensível gravaria com gosto na pedra destinada a cobrir outra pedra, aquela pedra em que eu finalmente me assumiria, sem veleidades de ser outra coisa qualquer.)
Deixemo-nos de asneiras: peguem em mim de uma vez por todas e ergam-me numa praça qualquer, sobre um pedestal baixinho, enfeitado por ilegível placa que finja narrar um arremedo de vida. Sempre será mais uma fotografia a juntar à coleção de qualquer turista consciencioso, com os filhos em pose rodeando o mamarracho. E quando não estiver a servir nessa vocação, para dar à pedra fria um pouco de calor e vida, que os pombos me caguem em cima enquanto passam voando, sem pensarem sequer no que fazem.
quinta-feira, 27 de março de 2014
Terra
Um pedaço de terra, misturado com pedras e merda, pode ter consciência, ideias e sentimentos. A ideia parece fantástica, mas foi precisamente o que aconteceu, quando um monte de terra ganhou vida, e pensou e sonhou, e sofreu por fim quando o sonho acabou.
Um pedaço de terra pode sentir e sonhar, e morrer por dentro quando o sonho morre. Mas isso não muda nada de relevo. Um pedaço de terra, feliz ou devastado, será sempre o que nunca deixou de ser: um monte de pó e merda.
domingo, 16 de março de 2014
Plágio
E uma apatia frouxa e solta,
Uma enorme lassidão,
Entra em mim, e nem me revolta.
Chove merda à minha volta,
E está-se cagando o meu coração.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014
Crazy
I'm crazy. I mean, I think I'm crazy. Can't be really sure, since the lab won't test me anymore. They say the last time they gave me a cat scan, the cat got brain damage. So, I'm just probably crazy, which is more than can be said for the cat, who now believes itself to be a lamp post. As for me, I'm quite convinced that I am not a lamp post, I'm just cookoo bananas. It is a colourful state of mind, and not at all a bad thing to be. It has its drawbacks, though.
People don't quite get you when you're crazy. They think it's ok to push you around because you don't mind anyway, and they fail to understand that the only reason you don't mind it is because it is not worth minding anything. Until some day, for some reason, you happen to hurt, and that's when it all goes sour. Because crazy people shouldn't hurt, just like clowns should not cry. You don't get to hurt when you're crazy.
So you bottle it inside and go on living; you keep it to yourself and go on smiling, until the day you snap and do something crazy. And then you're in trouble, because you didn't have the right to do that. Crazy people don't even get the right to be crazy.
And it's all fine to say that I would not be convicted by a jury of my peers, but I have no peers. No one has any peers, we're just too different from one another. Every man is an island, a big island of trifle and nothing in a vast, trifle ocean of nothingness. Then one day the island sinks, and the emptiness becomes just a little bit emptier. That's not the end of the world, it's just the end of nothing, so who should care?
I started caring. I'm tired of stuff that no one in their right mind would care about. But I'm not in my right mind, I'm crazy. No more nice, no more easy going. Just plain nuts. And I'm fine with it. To the extent, at least, that I can be said to be fine.
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