Há que enterrar os nossos palhaços, se queremos manter um ar sério... até os elefantes, antes de morrer, têm o cuidado de o fazer em sítio adequado...
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
Desintegração
O despertador andava há vários dias com umas cólicas nos ossos, e nesta manhã esqueceu-se completamente de me acordar. Despertei estremunhado ao som gorgolejante de uma potência irracional, e tomei duche como quem lava o seu hamster preferido na esplanada de um café. Enquanto tomava o pequeno-almoço, cismando sobre a razão por que os melros se parecem tanto com as quatro da tarde, apercebi-me de que me tinha esquecido de pôr o cérebro.
De pouco me serviu emendar o meu erro: a maldita coisa continuava a não funcionar. Ainda parecia uma esponja, como nos tempos em que trabalhava, mas agora era uma esponja velha e encardida, gasta de tantas sujidades e barrelas e mais porcarias ensopadas e espremidas e repetidas até que a própria falta de razão deixasse de fazer sentido. Dei-lhe umas pancadas para ver se o espertava, e o cotovelo esquerdo brindou-me com um pequeno pontapé no estômago.
Pareceu-me preferível não lhe mexer mais, e ir dar uma volta. Pus o chapéu, tendo o cuidado de conservar a cabeça por baixo dele, e desci a dúzia de degraus, tropeçando criteriosamente em todos os números primos. Na rua, trotinetas melodiosas esvoaçavam num espaço vetorial que não estava ali na véspera, e é claro que chovia.
Nesse momento empreendi um esforço louvável, ou pelo menos um esforço que eu sem hesitar louvei, para tentar pensar coerentemente, mas a coerência tinha-se afogado uns dias antes, e o artista que nos pinta a vida ainda não tinha desenhado nada que a substituísse. O que restava do meu cérebro indignou-se com a tentativa, e pôs-se a pensar em frangos assados.
Foi nesse ponto que um autocarro saiu de trás da quinta sinfonia e me atropelou, deixando-me feito em pedaços. O dia estava decididamente a correr mal, e achei melhor limpar o sangue e voltar para casa, onde passei o resto da vida a engraxar velhos teoremas de solas rotas. Deve haver coisas piores para fazer, sobretudo para alguém que esqueceu já de como se faz seja o que for. O cérebro espirrou uma última vez, mas já nem dei por isso.
sábado, 12 de outubro de 2013
Parce Sepultis
Tu por aqui? Homem, estava bem longe de te ver. E ainda bem que te encontro, que já me sentia a fazer papel de parvo aqui parado. Estes velórios são uma seca. Eu o que foi, foi terem-me apanhado desprevenido, e já não fui a tempo de inventar uma desculpa. Ouve lá, ao menos sabes quem é o morto?
Sim, eu sei que é o que está deitado no caixão lá ao fundo, não te faças de parvo. Também não conheces? Eu nem sei se conheço se não, disseram-me que era um tipo lá do banco, um gajo que toda a gente conhecia. Eu também sou gente, portanto devia conhecer, mas o nome não me diz nada. Parece-me que ouvi alguém dizer há bocado que o gordo estava cá, mas ainda não o vi. Talvez ele saiba, é gajo para isso.
E o que tens feito, que já não te vejo há meses? Pois, o costume, isso é o que eu também faço. Espera aí, talvez esta aqui saiba alguma coisa sobre o morto. Desculpe, minha senhora, conhece por acaso… não, não conhece. Ninguém conhece, pelos vistos. E contudo dizem que era um tipo conhecido. Por acaso não viu por aí o gordo? Sim, parece que está cá. A fazer o quê? Não faço ideia. Nunca soube o que faz ele. Onde quer que esteja, ninguém sabe nunca quem é ele ao certo, ou o que está a fazer ali. Acho que nem o nome dele sabem, por isso é que todos lhe chamam o gordo.
Fui há tempos a um almoço, e lá estava ele, com o seu ar de palerma bem-intencionado. Era um aniversário, e não estranhei vê-lo ali, mas reparei que toda a gente se afastava um bocado dele, e o olhavam de soslaio, como quem não está bem certo de conhecer ou não uma pessoa. Ainda tentei perceber como se chamava, mas não ouvi ninguém trata-lo pelo nome. Só dias mais tarde é que vim a saber que era ele o aniversariante. Quando o voltei a encontrar, ainda pensei em dar-lhe os parabéns, mas ele disse um disparate qualquer, e perdi a vontade de falar no assunto.
Aparece em todo o lado, e agora que o queremos ver, ninguém o encontra. Afinal ninguém o viu, só dizem que alguém disse que ele estava cá. E isto do morto está-me a fazer espécie. Vou lá dar uma espreitadela.
Não vais acreditar nisto, pá. O gajo no caixão é o gordo! Bem diziam que ele estava cá. Olha, pelo menos agora já ninguém tem de se preocupar em saber o nome dele. Ouve, temos de pôr a conversa em dia. Queres combinar um almoço?
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