terça-feira, 4 de setembro de 2012

Drácula



Sob a égide monumental da torre do relógio de Sighisoara, numa mesa de café que precária se equilibra no lajedo antigo, senta-se o conde Drácula. Aconchegando a capa negra de gola escarlate, cuidando de não manchar a camisa de folhos, o conde beberrica um café. Os lábios vermelhos destoam no rosto caiado, que um chapéu preto ensombra. Pretas são também as calças, a terminar em vulgares peúgas e sapatos decepcionantes.

O mármore comemorativo que a parede ostenta anuncia ao mundo que nesta casa nasceu, por alturas de mil quatrocentos e trinta, o famigerado Vlad Dracul, evento que a humanidade sofredora de bom grado teria dispensado. Este Drácula que agora se senta à porta é bem mais jovem, andará talvez na sua sexta ou sétima década, e causa mais dó que terror. A pintura que lhe branqueia o rosto não chega a ser uma lividez cadavérica, mas dá-lhe antes o ar de um palhaço triste. A espaços vêm crianças sentar-se ao seu colo para a fotografia, como se de uma nova espécie de Pai Natal se tratasse. Para essas ocasiões, tem uns dentes caninos postiços que emprestam mais realismo à personagem, mas o terror continua ausente.

Ou talvez esteja lá. Há uma melancolia resignada no olhar do vampiro, um cansaço de quem contemplou vezes demais o horror da vida, a fadiga e as dores e o preço da comida, e só espera agora o repouso do túmulo, que não é de facto repouso porque não é de facto nada. Repouso era o do outro conde, cuja vida não terminava quando se deitava no ataúde, mas apenas recobrava forças com que à noite saísse e assustasse a vizinhança. Não será assim com este, que um dia se estenderá no túmulo para jamais se levantar, e nem sequer saberá disso. O horror da vida é não existirem vampiros.

Num período desocupado, o conde levanta-se e vai buscar um cinzeiro. Segura o cigarro com as mãos enluvadas de negro. Sobre as luvas há um esqueleto pintado, ossos de fantasia a cobrirem os ossos verdadeiros, talvez ainda mais frágeis. Ao fim do dia irá para casa jantar, e sangrará de uma gengiva apodrecida, único sangue ainda presente no seu quotidiano. Ainda voltará outros dias, e depois tudo acabará. O relógio da torre prosseguirá impávido o seu pontual badalar, e continuaremos a não saber porquê.

Uma jovem de saia exígua fotografa a placa, e troca com a sua companheira algumas palavras sobre Vlad Dracul, a grande atração de Sighisoara. O conde tosse o resto do cigarro, e o seu catarro tem apenas a fadiga de décadas. Só as lendas duram seis séculos.

Transilvânia, 1 de Setembro de 2012

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