Uma Super Bock, claro, e talvez, não sei, um daqueles folhados. O objectivo era a cerveja, mas são horas de jantar, e o estômago vazio agradece decerto o folhado acrescentado à encomenda. Por entre a bebida e a mastigação, reparo numa mosca que se passeia pelo tampo de vidro do contador, e que circum-navega os círculos de cerveja deixados pelo copo transbordado. Sopro-a para a convencer a voar, mas ela não parece disposta a tal, é bem possível que leve já um grãozinho na asa.
Outra cerveja, já sem o álibi alimentar, pois não me apetece comer mais folhados, e a mosca parece concordar comigo, quando esquiva as migalhas do pastel e submerge, de probóscide em riste, no lago ampliado da cerveja. Consumo a minha própria bebida enquanto ela mal fez mossa na sua, são estas as consequências de se pesar mais de uma centena de quilos, em vez de meros miligramas. Farto de cerveja, encomendo um brandy!
A mosca descobriu o brandy, e caminha agora para ele, com aquele passo hesitante que o álcool de uso impõe ao espírito virado para a reflexão. Parece lançar contas à sua vida, sem que a soma lhe agrade particularmente. Supomo-la a pensar no moscardo com quem saiu duas ou três vezes, e que impulsivamente expulsou da sua vida, quem sabe se terá sido sensata. Ele bem mostrara não ser digno de confiança, mas a sua companhia divertia-a, não teria sido talvez melhor mantê-la, e o que é que eu estava a pensar, que me perdi agora? Num passo arrastado, a mosca adentra o círculo de brandy, que começa a percorrer num circuito degustativo. Farto-me de a contemplar, e dedico-me à televisão, que transmite um jogo de futebol. Farto-me ainda mais disso, e volto à mosca, em atenção a quem peço outro brandy.
Agora sou eu que penso na vida, com todas as suas complexidades. Cada aspecto novo leva-me a beber mais um golo, e depressa a soma dos aspectos esgotou o cálice. O que sobrou está sobre o balcão, na forma de um círculo que a mosca pesadamente percorre. O meu espírito brinca ainda com a ideia de mais um cálice, mas verifico que exauri já os meus recursos, pelo que pago a conta e me preparo para sair.
Lanço ainda um último olhar à mosca, que percorre sempre a mancha de brandy, como que a lembrar-me ironicamente que até para ser um bêbado é preciso ter dinheiro. Isso, ou ser um artrópode.
Há que enterrar os nossos palhaços, se queremos manter um ar sério... até os elefantes, antes de morrer, têm o cuidado de o fazer em sítio adequado...
segunda-feira, 11 de julho de 2011
terça-feira, 28 de junho de 2011
Outono
Começo a convencer-me que é uma lei da natureza – eu e as estações do ano não nos damos bem. De quantos Dezembros cantei já os dias de sol brilhante e frio, a árctica emulação de um Verão primaveril, o despontar de promessas fora de tempo? E agora que o Verão se estabeleceu em toda a sua abrasadora canícula, que as praias estalam de corpos grelhando no estival braseiro, não é que dou por mim descendo uma rua de Outono, entre arvoredos doirados e fulvos, a que uma brisa fresca vai já desfolhando a chama e o ouro?
É uma jornada alegre e bem-disposta, assim empreendida entre amigos e amores, bem cercado dos favores e lealdades em que um coração se compraz. Os troncos que balizam a vereda que desce para o mar adoptam posturas quase bonacheironas, assim grossos e nodosos, exibindo com deleite as suas cabeleiras de fogo. Apoio-me ao ombro que me ladeia, mas escorrego, o ombro não está lá. Um choque, decerto, e um desequilíbrio, mas há sempre outro lado onde me posso apoiar. E assim a jornada prossegue, coxa decerto, mas sempre feliz. E as árvores soltam como sempre as suas folhas de Outono, e guardam as suas cabeleiras de chama.
Vem depois um dia, o dia inevitável, em que todo o apoio se desvanece. É chegado o tempo de compreender que ninguém desce comigo a rua do Outono, que só com dois ombros posso contar, e esses são os meus. E espanto-me então da minha arrogância, de ter pensado um dia que havia mais do que isso. O Verão é um tempo de camaradagem e amizade, mas todos descemos o Outono sozinhos.
Não faz mal, não é sequer grave. Exige um pouco de tempo, é certo, como qualquer realidade. Cedo compreendo que me cabe descer essa rua direito, sem me apoiar a nada ou ninguém. Muitas vezes cambaleei nessa avenida, onde ainda agora me desequilibrei ao estender a mão para o ombro que não estava lá. Mas já recuperei o equilíbrio, e não corro mais esse risco. Agora sei que estou só, não preciso de confiar em ninguém, nem de voltar a tropeçar.
Perdi uns metros nesta jornada, mas ganhei firmeza. Mentiram-me e recebi a mentira em face, mas ganhei sabedoria. Perdi falsos apoios, ganhando a certeza que o único apoio verdadeiro está em mim.
À minha frente estende-se a longa estrada de Outono, doirada e rubra como o fim de um Verão que ainda mal começou. Sei que a percorrerei até ao fim. Agora já não tenho dúvidas, nem preciso de perguntar a ninguém qual é o meu caminho.
É uma jornada alegre e bem-disposta, assim empreendida entre amigos e amores, bem cercado dos favores e lealdades em que um coração se compraz. Os troncos que balizam a vereda que desce para o mar adoptam posturas quase bonacheironas, assim grossos e nodosos, exibindo com deleite as suas cabeleiras de fogo. Apoio-me ao ombro que me ladeia, mas escorrego, o ombro não está lá. Um choque, decerto, e um desequilíbrio, mas há sempre outro lado onde me posso apoiar. E assim a jornada prossegue, coxa decerto, mas sempre feliz. E as árvores soltam como sempre as suas folhas de Outono, e guardam as suas cabeleiras de chama.
Vem depois um dia, o dia inevitável, em que todo o apoio se desvanece. É chegado o tempo de compreender que ninguém desce comigo a rua do Outono, que só com dois ombros posso contar, e esses são os meus. E espanto-me então da minha arrogância, de ter pensado um dia que havia mais do que isso. O Verão é um tempo de camaradagem e amizade, mas todos descemos o Outono sozinhos.
Não faz mal, não é sequer grave. Exige um pouco de tempo, é certo, como qualquer realidade. Cedo compreendo que me cabe descer essa rua direito, sem me apoiar a nada ou ninguém. Muitas vezes cambaleei nessa avenida, onde ainda agora me desequilibrei ao estender a mão para o ombro que não estava lá. Mas já recuperei o equilíbrio, e não corro mais esse risco. Agora sei que estou só, não preciso de confiar em ninguém, nem de voltar a tropeçar.
Perdi uns metros nesta jornada, mas ganhei firmeza. Mentiram-me e recebi a mentira em face, mas ganhei sabedoria. Perdi falsos apoios, ganhando a certeza que o único apoio verdadeiro está em mim.
À minha frente estende-se a longa estrada de Outono, doirada e rubra como o fim de um Verão que ainda mal começou. Sei que a percorrerei até ao fim. Agora já não tenho dúvidas, nem preciso de perguntar a ninguém qual é o meu caminho.
quarta-feira, 15 de junho de 2011
O Ciber-Pateta
Nestes tempos já maduros do fenómeno informático, aqueles de nós que viram nascer e crescer estas tecnologias, e acompanharam as mudanças sociais que elas trouxeram, não podem deixar de lamentar com alguma nostalgia a quase extinção desse animal bruto e terno, o Ciber-Pateta. Se bem que incómodo e frequentemente irritante, o Ciber-Pateta emprestava à info-paisagem um encanto todo próprio, e que foi parte integrante desses tempos de mudança.
Quem é o Ciber-Pateta? A espécie sempre foi variada, há que admiti-lo, e nem todos os seus membros apresentavam os mesmos traços. Uma característica era todavia comum a todos – o impulso irresistível, frenético e incontrolável, de terminar a leitura de cada mail com um clique no botão de Forward. Por mais incrível, disparatado, ou completamente falso, o Ciber-Pateta partilhava. Com Forward. Para toda a lista de endereços. Toda, e com os endereços em aberto. Quando alguém mais informado lhe ensinava a usar o Bcc, ele agradecia, com Reply All, evidentemente. E depois não usava, mas voltava a agradecer!
De vez em quando, uma alma mais bem-intencionada, ou menos paciente, não se conseguia impedir de responder a um Forward mais descabelado. Com toda a diplomacia que conseguia reunir, lá lhe explicava que a história dos animais sem cabeça nem pés usados para fazer hambúrgueres não tinha de facto pés nem cabeça; que esses animais, mesmo que conseguissem existir sem cabeça, custariam certamente muito mais que as tradicionais vacas; e que, de resto, tudo aquilo não tinha ponta por onde se lhe pegasse.
A resposta não se fazia geralmente esperar, e era invariavelmente um enérgico “Mas tu não julgas que eu acredito mesmo naquilo, ou achas que eu sou parvo?”. A alma bem-intencionada abstinha-se então de produzir uma resposta à última pergunta, com base nas provas dadas, e optava antes por acenar a bandeira da paz. O Ciber-Pateta perdoava e esquecia, porque no fundo o Ciber-Pateta sempre foi um animal cordato, e não se falava mais nisso. No outro dia, mandava-nos um Forward afirmando que a mais recente versão do Windows estava cheia de mensagens subliminares com que Bill Gates tencionava dominar o mundo, estabelecendo uma frente de ataque tripartida com base na América do Norte, na Arábia Saudita, e na Póvoa de Santo Adrião. A alma bem-intencionada tinha entretanto aprendido a sua lição, e já não se metia a responder.
Uma característica bem reveladora da modéstia da espécie era a sua tendência para se declararem inábeis em matéria de informática. A prolixidade dos seus mails facilmente desmente tal asserção. Note-se que a capacidade de programar em Assembler ou VBA não é uma “habilidade” – é uma profissão, tal como ser mecânico de automóveis ou piloto de aviões. Ninguém se considera menos hábil para embarcar num avião por não o saber pilotar, nem se considera um condutor incapaz por não conseguir reparar um motor. Como utilizador, o Ciber-Pateta sempre foi habilíssimo. Só para o que queria, é claro.
O que aconteceu então a esse simpático ruminante? Bem, aconteceu-lhe a blogosfera. E depois aconteceram-lhe as redes sociais. E com essas alterações do modelo de comunicação global, o Forward caiu em desuso. Isto não é brincadeira, o Forward é o habitat natural desta espécie, é a impunidade e o álibi para comunicar seja o que for sem assumir responsabilidade por nada. Se alguma razão tiver de ser evocada para fazer aquele Forward, está sempre disponível a razão óbvia – alguém o fez antes, ou ele não o teria recebido.
Escrever um artigo num blogue, ou publicar um link num FaceBook, é já um acto de iniciativa, e traz implícito um envolvimento de quem o faz com a veracidade do tema abordado. O autor pode estar enganado, e todo aquele conteúdo ser falso, mas é preciso que esteja pelo menos plausivelmente enganado. Publicar um link e depois afirmar que não se acredita em nada do que se publicou é assumir-se publicamente como um imbecil. E isso não é nada próprio do Ciber-Pateta, que – para começar – nunca assumiu coisa nenhuma. E sempre foi isso que lhe deu o encanto.
Quem é o Ciber-Pateta? A espécie sempre foi variada, há que admiti-lo, e nem todos os seus membros apresentavam os mesmos traços. Uma característica era todavia comum a todos – o impulso irresistível, frenético e incontrolável, de terminar a leitura de cada mail com um clique no botão de Forward. Por mais incrível, disparatado, ou completamente falso, o Ciber-Pateta partilhava. Com Forward. Para toda a lista de endereços. Toda, e com os endereços em aberto. Quando alguém mais informado lhe ensinava a usar o Bcc, ele agradecia, com Reply All, evidentemente. E depois não usava, mas voltava a agradecer!
De vez em quando, uma alma mais bem-intencionada, ou menos paciente, não se conseguia impedir de responder a um Forward mais descabelado. Com toda a diplomacia que conseguia reunir, lá lhe explicava que a história dos animais sem cabeça nem pés usados para fazer hambúrgueres não tinha de facto pés nem cabeça; que esses animais, mesmo que conseguissem existir sem cabeça, custariam certamente muito mais que as tradicionais vacas; e que, de resto, tudo aquilo não tinha ponta por onde se lhe pegasse.
A resposta não se fazia geralmente esperar, e era invariavelmente um enérgico “Mas tu não julgas que eu acredito mesmo naquilo, ou achas que eu sou parvo?”. A alma bem-intencionada abstinha-se então de produzir uma resposta à última pergunta, com base nas provas dadas, e optava antes por acenar a bandeira da paz. O Ciber-Pateta perdoava e esquecia, porque no fundo o Ciber-Pateta sempre foi um animal cordato, e não se falava mais nisso. No outro dia, mandava-nos um Forward afirmando que a mais recente versão do Windows estava cheia de mensagens subliminares com que Bill Gates tencionava dominar o mundo, estabelecendo uma frente de ataque tripartida com base na América do Norte, na Arábia Saudita, e na Póvoa de Santo Adrião. A alma bem-intencionada tinha entretanto aprendido a sua lição, e já não se metia a responder.
Uma característica bem reveladora da modéstia da espécie era a sua tendência para se declararem inábeis em matéria de informática. A prolixidade dos seus mails facilmente desmente tal asserção. Note-se que a capacidade de programar em Assembler ou VBA não é uma “habilidade” – é uma profissão, tal como ser mecânico de automóveis ou piloto de aviões. Ninguém se considera menos hábil para embarcar num avião por não o saber pilotar, nem se considera um condutor incapaz por não conseguir reparar um motor. Como utilizador, o Ciber-Pateta sempre foi habilíssimo. Só para o que queria, é claro.
O que aconteceu então a esse simpático ruminante? Bem, aconteceu-lhe a blogosfera. E depois aconteceram-lhe as redes sociais. E com essas alterações do modelo de comunicação global, o Forward caiu em desuso. Isto não é brincadeira, o Forward é o habitat natural desta espécie, é a impunidade e o álibi para comunicar seja o que for sem assumir responsabilidade por nada. Se alguma razão tiver de ser evocada para fazer aquele Forward, está sempre disponível a razão óbvia – alguém o fez antes, ou ele não o teria recebido.
Escrever um artigo num blogue, ou publicar um link num FaceBook, é já um acto de iniciativa, e traz implícito um envolvimento de quem o faz com a veracidade do tema abordado. O autor pode estar enganado, e todo aquele conteúdo ser falso, mas é preciso que esteja pelo menos plausivelmente enganado. Publicar um link e depois afirmar que não se acredita em nada do que se publicou é assumir-se publicamente como um imbecil. E isso não é nada próprio do Ciber-Pateta, que – para começar – nunca assumiu coisa nenhuma. E sempre foi isso que lhe deu o encanto.
segunda-feira, 13 de junho de 2011
Inesperadamente…
Ontem, inesperadamente, fui sair à noite. Foi assim: estava sozinho em casa, tentando fingir que queria estar sozinho, que a solidão que inesperadamente ocorrera era bem-vinda, quando o telefone tocou sem que nada o fizesse esperar. Anuí ao convite inesperado, e estendi-o a outra amiga que o não esperava, mas que sem que eu esperasse aceitou. E inesperadamente se fez uma noite tal como as do passado, com copos de hoje e amigos de sempre. Não o esperava, confesso.
As horas passaram, os copos passaram, a lua quase cheia passou pelo céu todo, e pareceu em todo esse tempo que tempo nenhum tinha passado, que trinta anos das nossas vidas não haviam rolado, pesados e grossos, fazendo de nós outros do que o que fôramos. Por toda uma noite, vivemos o passado sem perder o presente; ou justamente o contrário, não sei bem.
Foi bom saber que ainda existíamos todos, que ainda existíamos uns para os outros, que muito do que jurámos décadas atrás manter vivo tinha de facto sobrevivido. Foi bom, bom e inesperado, descobrir que ainda éramos nós.
Votei para casa com a noite já velha, e deitei-me com o sol a brilhar-me pelo quarto todo, mas acordei novo, inesperadamente novo. É bom saber que ainda há coisas que não mudam, amizades com que podemos continuar a contar, laços com que contaremos sempre. Assim mesmo, quando menos esperarmos!
As horas passaram, os copos passaram, a lua quase cheia passou pelo céu todo, e pareceu em todo esse tempo que tempo nenhum tinha passado, que trinta anos das nossas vidas não haviam rolado, pesados e grossos, fazendo de nós outros do que o que fôramos. Por toda uma noite, vivemos o passado sem perder o presente; ou justamente o contrário, não sei bem.
Foi bom saber que ainda existíamos todos, que ainda existíamos uns para os outros, que muito do que jurámos décadas atrás manter vivo tinha de facto sobrevivido. Foi bom, bom e inesperado, descobrir que ainda éramos nós.
Votei para casa com a noite já velha, e deitei-me com o sol a brilhar-me pelo quarto todo, mas acordei novo, inesperadamente novo. É bom saber que ainda há coisas que não mudam, amizades com que podemos continuar a contar, laços com que contaremos sempre. Assim mesmo, quando menos esperarmos!
domingo, 5 de junho de 2011
Rock in Rio
Entre a enorme variedade de emails que recebo, provenientes de desconhecidos caridosos que de alguma forma misteriosa se inteiraram de que sou gordo, careca, tenho o pénis pequeno e sofro de impotência e ejaculação prematura ao mesmo tempo, um grupo há que me tem sempre merecido o maior carinho. Refiro-me a essa heróica equipa de publicitários que, chegando certa época do ano, não poupa um único email num esforço louvável de me manter a par, a todo o momento, daquilo que se passa, vai passar ou passou no Rock in Rio. Tal atitude é tanto mais notável quanto mais é conhecida a minha completa ignorância no que a esse fenómeno respeita. Mas lá vou lendo, compenetradamente, pois não está no meu feitio fazer desfeitas. Foi assim que me inteirei deste facto espantoso – o Rock in Rio deste ano é no ano que vem. Ou seja, está-se a preparar o Rock in Rio Lisboa 2012 – e a versão 2011 será no Brasil. Isto deu-me que pensar.
E pensar deu-me uma pequena dor de cabeça, pelo que desisti antes que aumentasse. Não sei de facto quando é o Rock in Rio neste ou naquele sítio, mas não sou o género de pessoa que se deixa derrotar pela ignorância. É sempre possível pesquisar, documentar, informar-me, ou, muito mais simplesmente, inventar tudo de uma ponta a outra. E eu tenho um fraco por soluções simples, é coisa que nunca neguei. Aqui vai, portanto, a história completa.
Desde o início me tem parecido que o Rock in Rio, com aquele nome, não seria nativo da cidade de Lisboa. Confirma-se agora a razão que me assistia – o Rock in Rio tem as suas origens no Porto! O evento, nesses tempos primordiais, tinha muito pouco a ver com música, e consistia essencialmente em grupos de portuenses que se juntavam para apedrejar o presidente da câmara. Um dia o Rui Rio fartou-se daquela chuva de calhaus que periodicamente lhe caía em cima, e disse aos participantes para onde haviam de ir: para Lisboa, bonita cidade, que tinha entre outras a larga vantagem de ele não estar lá. E já agora, acrescentou ainda, porque é que não tocavam qualquer coisinha, em vez daquele costume estúpido de atirarem pedras? O conselho não colheu inteiramente, e ainda hoje se vê por lá muita gente pedrada – no palco e fora dele. No primeiro caso, celebrizou-se recentemente uma artista estrangeira, Amélia Adega, que tem ainda assim uma bonita voz.
Mas este ano o Rock in Rio não é em Lisboa. Vão fazê-lo na Barra da Tijuca, e quem somos nós para nos opor? A Amélia não vai estar lá, e parece que também não conseguiram incluir o Prince. Existia, ao que apurámos, interesse de parte a parte, mas a participação foi inviabilizada por razões logísticas. Com efeito, começa a ser muito difícil encaixar num folheto de programa de dimensões normais “o artista anteriormente conhecido como o artista anteriormente conhecido como Prince”. Estarão lá, contudo, os Guns N’Roses, ou pelo menos parte deles. Fonte próxima da banda adiantou já que consideram a possibilidade de enviar apenas os Roses, baseado em que é supérfluo e um pouco ridículo enviar Guns para o Rio de Janeiro.
Em suma, tudo leva a esperar um bom espectáculo. Só acho que seria agradável e de bom tom – e a sugestão ainda vai a tempo de ser implementada – que chamassem ao evento “Rock in Lisbon”.
E pensar deu-me uma pequena dor de cabeça, pelo que desisti antes que aumentasse. Não sei de facto quando é o Rock in Rio neste ou naquele sítio, mas não sou o género de pessoa que se deixa derrotar pela ignorância. É sempre possível pesquisar, documentar, informar-me, ou, muito mais simplesmente, inventar tudo de uma ponta a outra. E eu tenho um fraco por soluções simples, é coisa que nunca neguei. Aqui vai, portanto, a história completa.
Desde o início me tem parecido que o Rock in Rio, com aquele nome, não seria nativo da cidade de Lisboa. Confirma-se agora a razão que me assistia – o Rock in Rio tem as suas origens no Porto! O evento, nesses tempos primordiais, tinha muito pouco a ver com música, e consistia essencialmente em grupos de portuenses que se juntavam para apedrejar o presidente da câmara. Um dia o Rui Rio fartou-se daquela chuva de calhaus que periodicamente lhe caía em cima, e disse aos participantes para onde haviam de ir: para Lisboa, bonita cidade, que tinha entre outras a larga vantagem de ele não estar lá. E já agora, acrescentou ainda, porque é que não tocavam qualquer coisinha, em vez daquele costume estúpido de atirarem pedras? O conselho não colheu inteiramente, e ainda hoje se vê por lá muita gente pedrada – no palco e fora dele. No primeiro caso, celebrizou-se recentemente uma artista estrangeira, Amélia Adega, que tem ainda assim uma bonita voz.
Mas este ano o Rock in Rio não é em Lisboa. Vão fazê-lo na Barra da Tijuca, e quem somos nós para nos opor? A Amélia não vai estar lá, e parece que também não conseguiram incluir o Prince. Existia, ao que apurámos, interesse de parte a parte, mas a participação foi inviabilizada por razões logísticas. Com efeito, começa a ser muito difícil encaixar num folheto de programa de dimensões normais “o artista anteriormente conhecido como o artista anteriormente conhecido como Prince”. Estarão lá, contudo, os Guns N’Roses, ou pelo menos parte deles. Fonte próxima da banda adiantou já que consideram a possibilidade de enviar apenas os Roses, baseado em que é supérfluo e um pouco ridículo enviar Guns para o Rio de Janeiro.
Em suma, tudo leva a esperar um bom espectáculo. Só acho que seria agradável e de bom tom – e a sugestão ainda vai a tempo de ser implementada – que chamassem ao evento “Rock in Lisbon”.
segunda-feira, 14 de março de 2011
Desejo
Quero um apartamento no Algarve
A duzentos metros da praia.
Com varanda, barbecue e cadeirinhas,
E um mini-mercado ao lado.
Quero sair pela estrada de cimento
(aquela estrada diferente, de quem está de férias)
Comprar o jornal logo de manhã
E apreçar mexilhão, antes do almoço.
Quero trocar o meu apartamento
Por uma vivenda, piscina a repartir,
Num condomínio fechado e vazio,
Vazio de ideia, fechado de gente.
Quero boiar como uma baleia,
No mar de todos, que a todos consente
O mau gosto ocasional de serem baleias,
Ou o mais permanente, de não serem nada!
Quero muito, quero até o indisponível,
E por último até já acho que não quero nada.
A duzentos metros da praia.
Com varanda, barbecue e cadeirinhas,
E um mini-mercado ao lado.
Quero sair pela estrada de cimento
(aquela estrada diferente, de quem está de férias)
Comprar o jornal logo de manhã
E apreçar mexilhão, antes do almoço.
Quero trocar o meu apartamento
Por uma vivenda, piscina a repartir,
Num condomínio fechado e vazio,
Vazio de ideia, fechado de gente.
Quero boiar como uma baleia,
No mar de todos, que a todos consente
O mau gosto ocasional de serem baleias,
Ou o mais permanente, de não serem nada!
Quero muito, quero até o indisponível,
E por último até já acho que não quero nada.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
Areal
Um deserto de areia é duro de atravessar,
Vendo cada passo afundar nessa areia,
Que abrasiva nos abrasa.
Mas um deserto de mármore,
Limpo, asséptico e desempoeirado,
Pode ser maior tormento.
O tormento daquele dever ser
Que impiedoso esmaga o que é!
Uma racha no mármore que se enfeita,
Na ânsia de obliterar a areia que por baixo referve,
É bem mais intransponível que uma parede de areia.
E eu, que alcancei o mais alto cume
Da montanha secreta do deserto,
vi-me por fim agraciado em estátuas de mármore…
Todas recusei! Quero apenas, se querer ainda me resta,
A tua vida, o teu ser, a tua areia.
Vês-me alto demais! Não, ainda que tente,
Não sei fazer castelos em mármore!
Vendo cada passo afundar nessa areia,
Que abrasiva nos abrasa.
Mas um deserto de mármore,
Limpo, asséptico e desempoeirado,
Pode ser maior tormento.
O tormento daquele dever ser
Que impiedoso esmaga o que é!
Uma racha no mármore que se enfeita,
Na ânsia de obliterar a areia que por baixo referve,
É bem mais intransponível que uma parede de areia.
E eu, que alcancei o mais alto cume
Da montanha secreta do deserto,
vi-me por fim agraciado em estátuas de mármore…
Todas recusei! Quero apenas, se querer ainda me resta,
A tua vida, o teu ser, a tua areia.
Vês-me alto demais! Não, ainda que tente,
Não sei fazer castelos em mármore!
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
Sísifo
Sísifo empurrou a rocha, que como sempre rolou até ao sopé do monte, onde se deteve. Agora era sempre a subir, ombros e mãos metidos à tarefa árdua, todo um empurra daqui, não deixes cair dali, mais um metro vencido à escarpa, menos um metro que fica a faltar até ao topo. O caminho é familiar mas nem por isso menos traiçoeiro, e a rocha parece sempre encontrar formas novas de se fazer mais pesada, e renovada malícia no esgueirar-se das mãos que a pretendem suster com firmeza. Mas lá vai subindo, aos poucos e poucos, e aqui temos outro metro superado.
Não tem planos intermédios o declive, mas sempre se encontra aqui e além uma aresta mais saída, precário apoio do penedo que permite a Sísifo algum descanso dos músculos abusados, e uma mão livre com que enxugue o suor da testa, enquanto inspira fundo o fôlego com que há-de arrancar a próxima etapa. Metro após metro, quando não sejam meros centímetros, que sendo progresso tudo vale, mas etapa a etapa, vai-se aproximando o cume.
São sempre os piores, aqueles metros derradeiros em que a escarpa mais semelha uma parede a pique, quase sem suporte para a rocha que assenta agora quase por inteiro nos seus ombros. Mas os músculos retesam-se, a vontade endurece, e a montanha é por fim vencida. A rocha equilibra-se triunfante no topo, para logo rolar livremente pela vertente oposta. Sísifo omite a custo uma palavra menos digna, e segue-a até à planície onde por fim a rocha se põe em descanso.
Sem desanimar, volta a empurrar a rocha para junto da montanha. Já prestes a empreender nova subida, detém-no a voz estridente que se faz ouvir de longe: “Sissi, pára lá de brincar com essa pedra e anda lavar-te, que o almoço está pronto!”. Há que acorrer ao chamado, e a rocha lá fica, rochedo de Sísifo que não se aparta do chão. Por enquanto, que haverá de ter fim o almoço, e novas tentativas se seguirão logo à tarde.
Não tem planos intermédios o declive, mas sempre se encontra aqui e além uma aresta mais saída, precário apoio do penedo que permite a Sísifo algum descanso dos músculos abusados, e uma mão livre com que enxugue o suor da testa, enquanto inspira fundo o fôlego com que há-de arrancar a próxima etapa. Metro após metro, quando não sejam meros centímetros, que sendo progresso tudo vale, mas etapa a etapa, vai-se aproximando o cume.
São sempre os piores, aqueles metros derradeiros em que a escarpa mais semelha uma parede a pique, quase sem suporte para a rocha que assenta agora quase por inteiro nos seus ombros. Mas os músculos retesam-se, a vontade endurece, e a montanha é por fim vencida. A rocha equilibra-se triunfante no topo, para logo rolar livremente pela vertente oposta. Sísifo omite a custo uma palavra menos digna, e segue-a até à planície onde por fim a rocha se põe em descanso.
Sem desanimar, volta a empurrar a rocha para junto da montanha. Já prestes a empreender nova subida, detém-no a voz estridente que se faz ouvir de longe: “Sissi, pára lá de brincar com essa pedra e anda lavar-te, que o almoço está pronto!”. Há que acorrer ao chamado, e a rocha lá fica, rochedo de Sísifo que não se aparta do chão. Por enquanto, que haverá de ter fim o almoço, e novas tentativas se seguirão logo à tarde.
Subscrever:
Mensagens (Atom)