(Faz mais de dois anos que publiquei isto noutro lado qualquer. Por qualquer razão, ou mesmo sem precisar de razões, resolvi publicá-lo agora aqui. E sou capaz de voltar a fazer destas...)
Isto já chega! As coisas aguentam-se até um certo ponto, mas depois há que dizer basta! Tudo o que é demais farta, caramba! E outras expletivas do mesmo género, culminando no previsível etc., com os três pontinhos do estilo…
Vem isto tudo a propósito desta coisa velha, bizarra e difícil de definir, que responde pelo nome arcaico e desusado de Portugal. Já nos idos de 1871, escrevia Eça de Queiroz (cito de memória, e provavelmente mal): “A economia está na bancarrota; os políticos são alvo do descrédito geral; por toda a parte se rosna – o país está perdido”. Estas palavras, e muitas mais de idêntica actualidade, compuseram o primeiro número das memoráveis Farpas, e são hoje familiares a grande parte dos cidadãos desde que alguém as pôs a circular na Internet, com os espectáveis encómios, Vejam só, parece que foi escrito hoje, isto não mudou mesmo nada.
Pois é, a verdade é essa: isto não mudou e, a ser verdade o que diz o povo sobre os burros velhos e a respectiva capacidade de aquisição de novos talentos linguísticos, é de esperar que não venha já a mudar. Sejamos francos, vai quase um milénio que andamos nisto, é mais do que tempo de parar de protelar e encarar a realidade de frente.
Mas de onde, afinal, nos vem esta macumba? Bem, quando se fala de causas as opiniões dividem-se: uns assacam as culpas ao ilustre vimaranense, filho do conde D. Henrique, alegando que nada de bom se poderia esperar de um país fundado por um tipo que batia na mãe; outros preferem responsabilizar o D. Sebastião, que teve aquela triste ideia de se pôr a caçar mouros em tempo de defeso. Segundo algumas crónicas, o jovem rei terá bradado ao povo, quando embarcava: “Sobretudo, não façam nada enquanto eu não voltar”. O régio preceito manteve-se aparentemente em vigor até aos dias de hoje.
Na minha modesta opinião, contudo, a coisa vem de muito mais longe, dos tempos pagãos em que Viriato, esse líder cuja bravura apenas igualava a falta de visão política, espadeirava o romano pelas cristas dos Montes Hermínios. Reza a história – e agora não estou a inventar – que um perplexo centurião romano, dos que à época cá andavam, remeteu a César as seguintes novas da campanha ibérica: “Nos confins desta península habita um povo estranho e bruto, que nem se governa nem se deixa governar”. Genial Quintilius, ou lá como te chamavas tu, que na frase simples que lavraste deixaste escritos dois mil anos de história vindoura.
Pois, pois, dizem alguns, mas há também os Descobrimentos. Então e os Descobrimentos, a nossa epopeia trágico-marítima, quando Portugal se lançou ao mar e deu novos mundos ao mundo? Ora bem, em relação a isso nada há a dizer. É verdade histórica e irrefutável que o Portugal de quinhentos se lançou ao mar, mas o mesmo têm feito muitos homens de negócios depois de perder a fortuna na bolsa. O Portugal quinhentista enfrentava um dilema, crescer ou perecer, e conquistar a Ibéria estava fora de questão, já para não falar da Europa. Restava-nos atirarmo-nos ao mar, o que de facto fizemos, e tivemos depois a sorte de encontrar um novo mundo do outro lado. Mas quanto a isso, nós sempre fomos um povo com sorte.
E que fazer agora, quando tudo foi já tentado, o mar nada tem de novo a oferecer-nos, e a coisa parece ter chegado a um beco sem saída? Não creio que a minha opinião valha seja o que for neste particular, mas deixo-a aqui para quem quiser considerá-la. Com toda a franqueza, acho que devíamos desistir.
Não quero com isto propor que fechemos as portas, apaguemos as luzes e emigremos em massa, como é evidente. Não, Portugal continua a ser um excelente lugar para se viver, só falta encontrar quem o governe. Nem sequer precisamos de ser muito picuinhas quanto a quem nos há-de governar, desde que não seja português. Essa é uma condição não negociável, desde que sucessivas monarquias, repúblicas, ditaduras e democracias nos demonstraram já a razão que incontornavelmente assistiu ao respeitável centurião romano. Portugueses não, que venham outros quaisquer. Sujeitando-me à vaia colectiva de dez milhões de gargantas, proponho os espanhóis.
E porque não? Portugal tem franca vocação para ser uma província de Castela, e estou convencido de que seríamos uma das melhores. Sob o ponto de vista económico, a integração já está feita: basta relancear os olhos por qualquer prateleira de supermercado, ou contar os “Ys” presentes na mais elementar folha de instruções pretensamente traduzida para o nosso vernáculo, para conhecer que somos economicamente uma região turística de Espanha. Pior ainda, tal como em qualquer região turística, as coisas custam todas muito mais caro do que no país de origem.
De resto, que mais nos falta para sermos espanhóis? Temos climas semelhantes, regiões vinícolas adjacentes, entendemos bem a língua e, acima de tudo, temos essa característica fundamental que compartilhamos com três quartos da população espanhola: todos nós, sem excepção, temos um ódio de morte aos espanhóis! Julgo que o governo de Madrid, habituado à Catalunha, ao País Basco e à Galiza, não terá dificuldade em integrar mais uma região que não os pode ver nem pintados. Talvez a região autónoma da Madeira levante alguns problemas, mas esses são fáceis de resolver: basta que o parlamento faça passar um decreto a ilegalizar o Alberto João Jardim.
Julgo ter assim apresentado um verdadeiro plano de salvação nacional. Tudo o que o presente governo tem a fazer é deslocar-se a Madrid, convenientemente constituído em comissão interina, e entender-se com o senhor Zapatero. Diplomaticamente, explicar-lhe-ão que aquilo de 1640 não foi mais do que uma garotada, ele que não faça caso. De resto, todos os chamados insurrectos tinham, na verdade, o maior respeito e admiração pelo senhor Miguel de Vasconcelos. Aconteceu apenas que um deles fez um comentário elogiativo sobre a janela, o espanhol não entendeu, duro de ouvido como são todos eles, não ligue, isto não era para dizer, e vai de se atirar pela dita. Antes que alguém percebesse o que se passava estava proclamada a independência, mal-entendido que se corrige agora.
Haveria ainda outra solução para isto, mas essa era mais complicada. Vista por alto, passaria por um grupo de cidadãos, um grupo crescente até se tornar significativo, depois maioritário, e por fim esmagador, que tomasse consciência da sua cidadania; mil portugueses, um milhão, dez milhões, a exigirem a concretização de Portugal. Uma massa esmagadora que, sem deixar de apreciar benevolamente as prestações da selecção portuguesa no Euro e no Mundial de futebol, reservasse as bandeiras nas janelas para os verdadeiros eventos nacionais que faltam acontecer. Que protestasse contra o cancelamento do jogo do Benfica, claro, mas mil vezes mais contra os tribunais que não julgam, os hospitais que não curam, as escolas que não educam. Mas um país a sério exige um povo que o mereça, um povo que se leve a sério. Pensando bem, talvez seja mais fácil mandar vir os espanhóis.
Há que enterrar os nossos palhaços, se queremos manter um ar sério... até os elefantes, antes de morrer, têm o cuidado de o fazer em sítio adequado...
terça-feira, 9 de dezembro de 2008
domingo, 12 de outubro de 2008
O bolo de três andares.
Seria talvez um exagero, se disséssemos que as pupilas do garoto se dilatavam como pratos, maxime se afirmássemos que chegavam a atingir o diâmetro inaudito daquela portentosa obra de pastelaria. Mas o que não sofre dúvidas é que os círculos do olhar envolviam os círculos concêntricos do bolo, como se o rapaz pretendesse comer com os olhos aquela maravilha de natas e doce de ovos, delícia como jamais vira outra.
É preciso dizer que isto se passava durante a guerra, não interessa agora de que guerra se tratava. Perguntassem a um turista, e ele diria, num encolher de ombros, que se tratava de uma guerra qualquer, questionassem em vez disso o rapaz, e saberiam então que era a guerra, e isto ele diria por nunca ter visto outra, tal como jamais vira a paz. Não há muita coisa para ver numa guerra, e o que há é já demais, excesso de fumo, poeira, sangue e bocados de gente, e uma enorme carência de visões repousantes, garridos arco-íris sobre cascatas cristalinas, ou a neve apaladada de bolos capitosos. Aquele bolo, sem dúvida, fascinava o petiz.
A noiva apercebeu-se, com um sorriso, daquele amor indefectível que se estabelecera entre o garoto e o bolo, o seu bolo de casamento, imponente nos seus três andares. Fosse porque o seu coração feminino lhe soprava uma gentileza, fosse por saber bem o que era passar privações, o facto é que se acercou bondosamente dele, e convidou-o a ficar, até que a cerimónia se concluísse, e o bolo fosse partido. Poderia então saborear a sua justa parte, que, confidenciava-lhe ela, tinha recheio de morangos.
Os rituais que se seguiram foram longos, e chatos, para dizer a verdade, mas o rapaz permanecia enlevado, só com o grande bolo no seu espírito. No exterior soavam tiros, mas isso era apenas mais um som do quotidiano, ao qual já ninguém ligava muito. Após o que pareceu uma eternidade, chegou por fim o momento de cortar o bolo. Com a respiração suspensa, o miúdo observou cada passo da noiva, que se aproximava com a espátula, como se venerasse no templo uma vestal. A antecipação tornara-se quase dolorosa, quando a faca finalmente tocou no bolo, que explodiu.
Não vale a pena descrever o caos subsequente, as inúmeras lacerações causadas pelos pregos que a bomba maldosamente projectou, os corpos esfacelados e mutilados que sangrentamente rodeiam o rapaz, ele que não tem olhos para outro vermelho que não seja o recheio de morangos do bolo. Por entre cadáveres descompostos, lambe os pedaços de creme que lhe recobrem a cara, e busca entre os destroços outros bocados suculentos, que vai mordiscando.
A delegação da ONU que inspeccionou aquele local não queria acreditar naquele milagre: como era possível que uma das principais vítimas de um atentado daqueles, uma bomba recheada de ferragens sortidas, sobrevivesse incólume? O rapazito não teve dúvidas, Todos pensavam na bomba, sabe, mas eu só pensava no bolo. Aquele bolo era tudo para mim, e eu sentia cada pedaço de pão-de-ló, cada colher de natas ou ovos. Para mim, aquele bolo era inofensivo, e as coisas, como sabe, acabam sempre por ser aquilo que nós cremos que elas são. Como este bolo, por exemplo. Lembrando-se das suas boas maneiras, acrescentou delicadamente, É servido?
É preciso dizer que isto se passava durante a guerra, não interessa agora de que guerra se tratava. Perguntassem a um turista, e ele diria, num encolher de ombros, que se tratava de uma guerra qualquer, questionassem em vez disso o rapaz, e saberiam então que era a guerra, e isto ele diria por nunca ter visto outra, tal como jamais vira a paz. Não há muita coisa para ver numa guerra, e o que há é já demais, excesso de fumo, poeira, sangue e bocados de gente, e uma enorme carência de visões repousantes, garridos arco-íris sobre cascatas cristalinas, ou a neve apaladada de bolos capitosos. Aquele bolo, sem dúvida, fascinava o petiz.
A noiva apercebeu-se, com um sorriso, daquele amor indefectível que se estabelecera entre o garoto e o bolo, o seu bolo de casamento, imponente nos seus três andares. Fosse porque o seu coração feminino lhe soprava uma gentileza, fosse por saber bem o que era passar privações, o facto é que se acercou bondosamente dele, e convidou-o a ficar, até que a cerimónia se concluísse, e o bolo fosse partido. Poderia então saborear a sua justa parte, que, confidenciava-lhe ela, tinha recheio de morangos.
Os rituais que se seguiram foram longos, e chatos, para dizer a verdade, mas o rapaz permanecia enlevado, só com o grande bolo no seu espírito. No exterior soavam tiros, mas isso era apenas mais um som do quotidiano, ao qual já ninguém ligava muito. Após o que pareceu uma eternidade, chegou por fim o momento de cortar o bolo. Com a respiração suspensa, o miúdo observou cada passo da noiva, que se aproximava com a espátula, como se venerasse no templo uma vestal. A antecipação tornara-se quase dolorosa, quando a faca finalmente tocou no bolo, que explodiu.
Não vale a pena descrever o caos subsequente, as inúmeras lacerações causadas pelos pregos que a bomba maldosamente projectou, os corpos esfacelados e mutilados que sangrentamente rodeiam o rapaz, ele que não tem olhos para outro vermelho que não seja o recheio de morangos do bolo. Por entre cadáveres descompostos, lambe os pedaços de creme que lhe recobrem a cara, e busca entre os destroços outros bocados suculentos, que vai mordiscando.
A delegação da ONU que inspeccionou aquele local não queria acreditar naquele milagre: como era possível que uma das principais vítimas de um atentado daqueles, uma bomba recheada de ferragens sortidas, sobrevivesse incólume? O rapazito não teve dúvidas, Todos pensavam na bomba, sabe, mas eu só pensava no bolo. Aquele bolo era tudo para mim, e eu sentia cada pedaço de pão-de-ló, cada colher de natas ou ovos. Para mim, aquele bolo era inofensivo, e as coisas, como sabe, acabam sempre por ser aquilo que nós cremos que elas são. Como este bolo, por exemplo. Lembrando-se das suas boas maneiras, acrescentou delicadamente, É servido?
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Previamente publicado no Sapo
Aniversário.
O bolo era redondo. Isto nada tem de especial, e quase não valia a pena gastarmos espaço para o dizer, muitos bolos há que são redondos, será talvez a maioria deles a cair neste caso. Registe-se todavia que o bolo era redondo, redondo e verde.
A cor verde, que predominava na cobertura, pretendia representar um verdejante pasto, onde pequenos novelos de lã retouçavam bucolicamente. Havia ainda uma casa, modesta mas bem caiada choupana de pastores, e as velas, é claro. São muito importantes, as velas, num bolo de aniversário.
O miúdo sabia já contar, e certificou-se conscienciosamente de que oito farpas de cera colorida embandarilhavam o bolo, o tal bolo redondo dos seus oito anos. Trata-se de uma idade importante, pela transição que se dá, de uma criança de sete para um homem de oito. Em certas tribos de outros continentes, o facto é assinalado com uma caçada ao urso ou ao javali, por cá limitamo-nos a soprar oito velas, espetadas num bolo que por vezes é redondo.
O sopro daqueles jovens pulmões lançou na escuridão o aplauso que finalizava a tradicional canção de parabéns, mas ainda se acendiam as primeiras luzes quando o miúdo quis repetir o ritual.
Também isto estava previsto, e o pai preparou-se para reacender os oito lumes. Foi contudo surpreendido pela acção do rapaz, que retirou da algibeira quatro amarrotados tocos de vela, os quais cravou no bolo, um pouco de esguelha. O pai acendeu sem um comentário as velas todas, e de novo se repetiu a canção, e o sopro final.
Quis no entanto o pai esclarecer melhor aquela questão das quatro velas, mas o petiz nada de estranho via nisso, eram os parabéns da irmã, que completava nesse mesmo dia doze anos. Quando lhe disseram que isso não era assim, que era ele o mais velho, retorquiu com impaciência, Não é isso, pai, estou a falar da mana, a que não nasceu. A que vocês não quiseram que nascesse, lembras-te?
É certo que o pai compreendeu, mas como podia o miúdo saber de algo que todos ignoravam, e que se passara quatro anos antes de ele ter vindo ao mundo? Tentou debilmente dissuadir o rapaz, mostrar-lhe que não, que nenhuma irmã existia, mas a criança sorriu com alguma tristeza, e disse, É claro que existe, pai, como querias tu que eu, com oito anos, conseguisse soprar sozinho doze velas?
A cor verde, que predominava na cobertura, pretendia representar um verdejante pasto, onde pequenos novelos de lã retouçavam bucolicamente. Havia ainda uma casa, modesta mas bem caiada choupana de pastores, e as velas, é claro. São muito importantes, as velas, num bolo de aniversário.
O miúdo sabia já contar, e certificou-se conscienciosamente de que oito farpas de cera colorida embandarilhavam o bolo, o tal bolo redondo dos seus oito anos. Trata-se de uma idade importante, pela transição que se dá, de uma criança de sete para um homem de oito. Em certas tribos de outros continentes, o facto é assinalado com uma caçada ao urso ou ao javali, por cá limitamo-nos a soprar oito velas, espetadas num bolo que por vezes é redondo.
O sopro daqueles jovens pulmões lançou na escuridão o aplauso que finalizava a tradicional canção de parabéns, mas ainda se acendiam as primeiras luzes quando o miúdo quis repetir o ritual.
Também isto estava previsto, e o pai preparou-se para reacender os oito lumes. Foi contudo surpreendido pela acção do rapaz, que retirou da algibeira quatro amarrotados tocos de vela, os quais cravou no bolo, um pouco de esguelha. O pai acendeu sem um comentário as velas todas, e de novo se repetiu a canção, e o sopro final.
Quis no entanto o pai esclarecer melhor aquela questão das quatro velas, mas o petiz nada de estranho via nisso, eram os parabéns da irmã, que completava nesse mesmo dia doze anos. Quando lhe disseram que isso não era assim, que era ele o mais velho, retorquiu com impaciência, Não é isso, pai, estou a falar da mana, a que não nasceu. A que vocês não quiseram que nascesse, lembras-te?
É certo que o pai compreendeu, mas como podia o miúdo saber de algo que todos ignoravam, e que se passara quatro anos antes de ele ter vindo ao mundo? Tentou debilmente dissuadir o rapaz, mostrar-lhe que não, que nenhuma irmã existia, mas a criança sorriu com alguma tristeza, e disse, É claro que existe, pai, como querias tu que eu, com oito anos, conseguisse soprar sozinho doze velas?
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Previamente publicado no Sapo
A história da carochinha.
Pasmado face a uma folha de papel branco, sem atinar com fábula ou conto com que a enchesse, decidi contar, para variar, a história da carochinha.
A boa da carochinha encontrou uma moedinha, e resolveu casar-se. Isto, pelo menos, é o que nos afiança o conto original, e cada qual se avenha agora para perceber onde raio pretende chegar uma barata na posse de uma quantia que não ultrapassa os dois euros. Disto fazendo tábua rasa, lá foi a carocha lançar o pregão em que oferecia o corpinho ao manifesto.
Segue-se neste ponto uma improvável corte de machos inadequados, e quer o autor convencer-nos de que o burro (o burro, santo Deus), não reúne as condições para casar com a barata porque a sua voz é muito feia. A sua voz? Não haverá aí outro problema? Quero dizer, vocês já viram um burro?
Vem em seguida a cabra, proposta de lesbianismo consentida para não terem de lhe chamar o aumentativo masculino do mesmo nome, e continua a ser o registo vocal o problema de maior monta. Começa então o leitor a questionar-se, será que o autor sabe de facto o que é uma carocha, e que tamanho tem?
Desfila depois um cortejo de semelhantes inanidades, que culmina quando o artrópode elege uma façanhuda ratazana como o amor da sua vida, lançando deste modo em espasmos de dolorosa hilaridade todos aqueles que contactaram já com um destes roedores. A barata sente-se contudo à altura do desafio, mas acaba por ver os seus planos transtornados quando o citado transmissor de doenças infecciosas, naturalmente interessado em comida mais sólida do que um mero insecto, se debruça e cai no caldeirão, onde é eventualmente cozinhado.
E o insecto fica a lamentar-se, em vez de se alegrar por ter escapado de boa ao triste destino de, além de barata, ficar conhecida de todos como “Dona Rata”. E parece que acabou a varrer melancolicamente a casa, triste caçada a um pó perfeitamente inocente de todos estes eventos.
A boa da carochinha encontrou uma moedinha, e resolveu casar-se. Isto, pelo menos, é o que nos afiança o conto original, e cada qual se avenha agora para perceber onde raio pretende chegar uma barata na posse de uma quantia que não ultrapassa os dois euros. Disto fazendo tábua rasa, lá foi a carocha lançar o pregão em que oferecia o corpinho ao manifesto.
Segue-se neste ponto uma improvável corte de machos inadequados, e quer o autor convencer-nos de que o burro (o burro, santo Deus), não reúne as condições para casar com a barata porque a sua voz é muito feia. A sua voz? Não haverá aí outro problema? Quero dizer, vocês já viram um burro?
Vem em seguida a cabra, proposta de lesbianismo consentida para não terem de lhe chamar o aumentativo masculino do mesmo nome, e continua a ser o registo vocal o problema de maior monta. Começa então o leitor a questionar-se, será que o autor sabe de facto o que é uma carocha, e que tamanho tem?
Desfila depois um cortejo de semelhantes inanidades, que culmina quando o artrópode elege uma façanhuda ratazana como o amor da sua vida, lançando deste modo em espasmos de dolorosa hilaridade todos aqueles que contactaram já com um destes roedores. A barata sente-se contudo à altura do desafio, mas acaba por ver os seus planos transtornados quando o citado transmissor de doenças infecciosas, naturalmente interessado em comida mais sólida do que um mero insecto, se debruça e cai no caldeirão, onde é eventualmente cozinhado.
E o insecto fica a lamentar-se, em vez de se alegrar por ter escapado de boa ao triste destino de, além de barata, ficar conhecida de todos como “Dona Rata”. E parece que acabou a varrer melancolicamente a casa, triste caçada a um pó perfeitamente inocente de todos estes eventos.
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Previamente publicado no Sapo
A princesa e a ervilha – fábula revista.
Para temperar um pouco a seriedade das coisas, proponho para hoje uma história de fadas, pour rire un peu.
Era uma vez uma princesa muito sensível, tão sensível que conseguia detectar uma simples gota de água no garrafão de onde diariamente emborcava os seus cinco litros de carrascão. A sua pele era tão delicada que certa noite, quando o porteiro do condomínio onde vivia deixou por incúria uma ervilha esquecida sobre o balcão da entrada, ela foi incapaz de pregar olho toda a noite, no seu apartamento do último andar. Bem, é certo que estava a braços com uma séria infecção urinária, na altura, mas o caso não deixa de ser fantástico.
A sua sensibilidade era lendária em todo o reino, e quando um anão um pouco vesgo lhe apareceu lá em casa, gabando-se de saber fiar ouro a partir de palha, sentiu logo que o gajo queria era afiambrar-se com as pratas que encontrasse no duplex. A perspicácia da princesa foi muito gabada, e todos concordaram que qualquer outra pessoa se teria deixado ludibriar pela pérfida manha da diminuta criatura.
No andar por baixo da princesa, vivia um gigante que tinha sete filhas, e uma galinha que punha ovos normais, caso que se tornara raríssimo por aquelas bandas, desde o acidente com o reactor nuclear. As sete filhas não eram bem sete, nem sequer filhas dele, eram mais um gato coxo de uma pata e três canários. O gigante, que com os sapatos calçados tinha quase um metro e noventa, decidiu um dia casar com a princesa, e foi-lhe bater à porta.
A pálida donzela corou ao ouvir a proposta do vizinho. A palidez devia-se sobretudo a uma ressaca da noite anterior, quando perdera um pouco o domínio dos eventos, dando azo a que três mânfios constatassem em primeira-mão como ela era sensível. Ainda um pouco enevoada pelos excessos da véspera, firmou-se melhor no gigante, e respondeu-lhe que não.
O gigante disse, Fa, Fe, Fi, Fo, Fu, que é uma coisa que os gigantes gostam muito de dizer, embora ninguém saiba exactamente porquê, e perguntou-lhe se o não era definitivo. Ela respondeu que sentia muito, porque era muito sensível, mas a resposta era mesmo não. Ele agradeceu, e deixou-a.
E o gigante, depois disso, viveu feliz para toda a vida.
Era uma vez uma princesa muito sensível, tão sensível que conseguia detectar uma simples gota de água no garrafão de onde diariamente emborcava os seus cinco litros de carrascão. A sua pele era tão delicada que certa noite, quando o porteiro do condomínio onde vivia deixou por incúria uma ervilha esquecida sobre o balcão da entrada, ela foi incapaz de pregar olho toda a noite, no seu apartamento do último andar. Bem, é certo que estava a braços com uma séria infecção urinária, na altura, mas o caso não deixa de ser fantástico.
A sua sensibilidade era lendária em todo o reino, e quando um anão um pouco vesgo lhe apareceu lá em casa, gabando-se de saber fiar ouro a partir de palha, sentiu logo que o gajo queria era afiambrar-se com as pratas que encontrasse no duplex. A perspicácia da princesa foi muito gabada, e todos concordaram que qualquer outra pessoa se teria deixado ludibriar pela pérfida manha da diminuta criatura.
No andar por baixo da princesa, vivia um gigante que tinha sete filhas, e uma galinha que punha ovos normais, caso que se tornara raríssimo por aquelas bandas, desde o acidente com o reactor nuclear. As sete filhas não eram bem sete, nem sequer filhas dele, eram mais um gato coxo de uma pata e três canários. O gigante, que com os sapatos calçados tinha quase um metro e noventa, decidiu um dia casar com a princesa, e foi-lhe bater à porta.
A pálida donzela corou ao ouvir a proposta do vizinho. A palidez devia-se sobretudo a uma ressaca da noite anterior, quando perdera um pouco o domínio dos eventos, dando azo a que três mânfios constatassem em primeira-mão como ela era sensível. Ainda um pouco enevoada pelos excessos da véspera, firmou-se melhor no gigante, e respondeu-lhe que não.
O gigante disse, Fa, Fe, Fi, Fo, Fu, que é uma coisa que os gigantes gostam muito de dizer, embora ninguém saiba exactamente porquê, e perguntou-lhe se o não era definitivo. Ela respondeu que sentia muito, porque era muito sensível, mas a resposta era mesmo não. Ele agradeceu, e deixou-a.
E o gigante, depois disso, viveu feliz para toda a vida.
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