terça-feira, 28 de outubro de 2014

Reconstrução




Tantos anos longe de mim! Três décadas ausente de um corpo vazio, que apenas parecia habitado. Regressei há três anos, e ainda não consegui pôr ordem na casa. Não se recupera uma vida começando do zero, porque essa vida foi de facto vivida, ainda que na minha ausência, e o ponto zero já está muito longe. A casa não está vazia, e os móveis em cacos não podem ser ignorados.

Trinta anos em que o meu corpo viveu só, e por si só decidiu e fez, e agora que voltei tenho de pôr em ordem todo o caos que ele deixou. Que eu deixei, porque de nada adianta dizer que não estava cá quando tudo foi dito e feito. Tenho de aprender a ser, mas nunca ignorando o que fui, responsabilidades a que não posso fugir.

Três anos difíceis, com tanto trabalho que só eu pude fazer, que de nada adiantaria explicar aos que julgaram que estive sempre cá, que nunca parti, que não houve regresso. Trabalho tão complexo, tantas vezes mal feito por o não ter sabido fazer melhor, por talvez não ser possível fazê-lo melhor. Trabalho talvez vão e fútil, mas que está quase completo.

Por fim a casa começa a parecer um lar, por fim começo a habitar em mim mesmo. Ainda falta muito, mas começo por fim a saber quem sou. Preste ou não preste, será sempre quem eu sou. E serei por fim alguma coisa.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Parado em queda livre



No fim da estrada ficava o penhasco. O homem ainda não sabia disso, e percorria sem preocupações a estrada, essa estrada que terminava num penhasco que não existia, tal como nenhum penhasco existe.

Dá jeito por vezes falar de penhascos, ou até escrever umas palavras sobre eles, mas isso não os faz existir. Nenhum penhasco existe, como não existe o frio ou a escuridão. O frio é só a ausência de calor, a escuridão não passa da ausência de luz, e um penhasco é apenas a ausência de algo a que nos possamos agarrar, de um solo onde possamos assentar a nossa própria existência. Podemos verificar se a quantidade de calor é excessiva ou insuficiente, discutir se a luz é escassa ou se é demasiada, e constatar se estamos bem seguros ou em desequilíbrio. Mas o vazio não se contabiliza, e sobre o vácuo nada há a dizer, e muito menos a fazer.

O homem chegou ao fim da estrada e caiu no penhasco. Melhor dizendo, caiu nessa não existência onde nada havia, fosse luz ou calor ou um mundo que o pudesse segurar. A queda foi longa e vazia, e também ele foi deixando de existir.

Não soube se chegou a tocar o fundo, nem sequer se haveria esse fundo, ou em que estado ele próprio lá chegaria. O grande nada que é o penhasco continuou a existir, vazio como sempre. O nada não ocupa espaço, e ele também já não.