Não haverá mais pássaros. Pairavam ainda dois ou três para juntar à colecção, mas jamais verão a luz do dia. Resta-lhes agora repousar no fundo de uma gaveta, ou onde os enviar o botão de Delete. Os meus pássaros estão extintos, e pela minha mão.
O mundo perdeu a cor e o som, tomou no seu lugar um cinzento angustiante, de uma angústia que nos aperta e espreme o coração, e onde só ressoa um silêncio que me dói. Enfim, é este agora o meu mundo, e todo feito pela minha mão. Fui eu que descorei estes cinzentos, fui eu que extingui aquele som que brilhava. É neste mundo que fiz que eu deverei viver agora.
Não me resta mais agora que suportar a tristeza de um mundo eriçado de árvores esparsas e lúgubres – noto agora que na maioria são figueiras, onde nem uma folha reverdeja. A figueira é uma árvore ligada à traição, o que calha bem aqui. Matei o último pássaro do mundo, e não sei se alguma vez compreenderei porque o fiz.
Há que enterrar os nossos palhaços, se queremos manter um ar sério... até os elefantes, antes de morrer, têm o cuidado de o fazer em sítio adequado...
quarta-feira, 26 de maio de 2010
domingo, 9 de maio de 2010
Mais passarada.
O Melro:
Já muitas vezes me têm ocorrido, naqueles momentos em que o pensamento vagueia ocioso como um sem-abrigo numa tarde de Verão, os inúmeros e inquietantes pontos de semelhança que existem entre mim e o melro. Para começar, temos ambos penas pretas e um bico amarelo (sobretudo o melro). Também voamos ambos, um com as asas da imaginação, outro com asas mesmo verdadeiras, mas tudo isso é voo. É claro que há pontos de divergência, como seja o facto de se conhecerem poucos exemplares de melros que pesem mais de oitenta quilos, mas na essência somos muito semelhantes.
Gosto sobretudo de ver o melro levantar voo. Não vale a pena pormo-nos a olhar para um melro e esperar de imediato um bater de asas de pássaro liberto. Não, o melro demora-se nos seus passeios e deambulações, pica aqui e esgravata acolá, até que vem a hora de se alçar pelos ares. Quando isso se dá, sabemos imediatamente que chegou o momento do voo. Torna-se por demais evidente o instante em que ele se vai erguer num bater turbulento de asas, e que direcção tomará. É igualmente evidente ser o melro o único que tudo isso ignora, pelo que parte sempre num voo espantado de quem não estava nada à espera que aquilo lhe acontecesse, não aqui e agora, pelo menos, e sem ter sequer uma ideia de qual o seu destino. Aprecio isso no melro, é sempre bom não estarmos sozinhos em assuntos destes.
Outro ponto em comum é que a maioria das pessoas que apreciam melros prefere apreciá-los à distância. Um melro a passear pelo jardim é uma bonita visão, mas um melro empoleirado no ombro é uma ideia inquietante, a convocar o receio de cagadas diversas. E não deixam de ter razão. Um melro que se aproxime demais é bicho que convém enxotar.
O melro é um animal interessante sem ser bonito, intrigante sem ser interessante, e irrelevante o suficiente para que não valha a pena perdermos tempo a intrigarmo-nos. Eu gosto de melros, e não me espanta que os haja com mais de oitenta quilos.
Já muitas vezes me têm ocorrido, naqueles momentos em que o pensamento vagueia ocioso como um sem-abrigo numa tarde de Verão, os inúmeros e inquietantes pontos de semelhança que existem entre mim e o melro. Para começar, temos ambos penas pretas e um bico amarelo (sobretudo o melro). Também voamos ambos, um com as asas da imaginação, outro com asas mesmo verdadeiras, mas tudo isso é voo. É claro que há pontos de divergência, como seja o facto de se conhecerem poucos exemplares de melros que pesem mais de oitenta quilos, mas na essência somos muito semelhantes.
Gosto sobretudo de ver o melro levantar voo. Não vale a pena pormo-nos a olhar para um melro e esperar de imediato um bater de asas de pássaro liberto. Não, o melro demora-se nos seus passeios e deambulações, pica aqui e esgravata acolá, até que vem a hora de se alçar pelos ares. Quando isso se dá, sabemos imediatamente que chegou o momento do voo. Torna-se por demais evidente o instante em que ele se vai erguer num bater turbulento de asas, e que direcção tomará. É igualmente evidente ser o melro o único que tudo isso ignora, pelo que parte sempre num voo espantado de quem não estava nada à espera que aquilo lhe acontecesse, não aqui e agora, pelo menos, e sem ter sequer uma ideia de qual o seu destino. Aprecio isso no melro, é sempre bom não estarmos sozinhos em assuntos destes.
Outro ponto em comum é que a maioria das pessoas que apreciam melros prefere apreciá-los à distância. Um melro a passear pelo jardim é uma bonita visão, mas um melro empoleirado no ombro é uma ideia inquietante, a convocar o receio de cagadas diversas. E não deixam de ter razão. Um melro que se aproxime demais é bicho que convém enxotar.
O melro é um animal interessante sem ser bonito, intrigante sem ser interessante, e irrelevante o suficiente para que não valha a pena perdermos tempo a intrigarmo-nos. Eu gosto de melros, e não me espanta que os haja com mais de oitenta quilos.
sábado, 8 de maio de 2010
Pássaros.
O Frango:
O frango firmou-se na borda do passeio, unhas cravadas no rebordo empedrado, e olhou para o seu lado esquerdo. Olhou depois para a direita, de novo para a esquerda, e depois repetiu tudo, como se não soubesse que outra coisa fazer. Passavam carros em todas as direcções.
O frango firmou-se ainda melhor, aguardou pacientemente uma pausa no trânsito, e lançou-se em passo de corrida, corrida essa que terminou no traço contínuo que dividia a estrada. Aí se deteve, bico exaurido do ritmo cardíaco acelerado, penas ameaçando voar no sopro dos carros que se precipitavam à sua volta, correndo num sentido os que lhe passavam pela frente, no outro os que o roçavam por trás. O frango firmou as unhas no asfalto, esforçando-se por não ser arrastado por todas aquelas correntes desencontradas.
O trânsito deste lado era pior, o que obrigou o frango a aguardar longamente, até que surgisse uma aberta. Esta foi bastante estreita, e só a rapidez do frango lhe permitiu atingir incólume o passeio oposto. Aí se firmou ofegante, e enquanto ofegava não alcançou evitar a interrogação que ameaçava corroê-lo por dentro: por que razão, na realidade, tinha ele atravessado a estrada?
O Corvo:
O corvo contempla-me sem cessar, negro como eu o contemplo a ele, soturno como cada dia que me vai passando. Não se trata do corvo de Poe, este é um bicho mais calado, que nem se dá ao trabalho de me dar os bons dias, quanto mais de me lançar um casual “Nevermore”. E todavia tudo nele, tudo menos a sua voz, tudo vaticina o meu fim, e me diz que tudo acabou já, e jamais voltará. O corvo seria a minha condenação, se a condenação não tivesse voz.
Tem os olhos vermelhos como carvões, aqueles carvões do Inferno que não existe, não depois da nossa morte. O Inferno vive-se neste mundo, e tem penas muito mais duras que os veros tições do Inferno, vermelhos como os olhos do corvo.
As patas do corvo têm unhas que se cravam na minha carne, enquanto o seu bico me despedaça o coração. Não é por acaso que o corvo me mata, o corvo mata-me porque o quer fazer. E acaba por ser bem sucedido, para além de tudo.
O corvo é um pássaro engraçado, e dá um bom animal de estimação.
O frango firmou-se na borda do passeio, unhas cravadas no rebordo empedrado, e olhou para o seu lado esquerdo. Olhou depois para a direita, de novo para a esquerda, e depois repetiu tudo, como se não soubesse que outra coisa fazer. Passavam carros em todas as direcções.
O frango firmou-se ainda melhor, aguardou pacientemente uma pausa no trânsito, e lançou-se em passo de corrida, corrida essa que terminou no traço contínuo que dividia a estrada. Aí se deteve, bico exaurido do ritmo cardíaco acelerado, penas ameaçando voar no sopro dos carros que se precipitavam à sua volta, correndo num sentido os que lhe passavam pela frente, no outro os que o roçavam por trás. O frango firmou as unhas no asfalto, esforçando-se por não ser arrastado por todas aquelas correntes desencontradas.
O trânsito deste lado era pior, o que obrigou o frango a aguardar longamente, até que surgisse uma aberta. Esta foi bastante estreita, e só a rapidez do frango lhe permitiu atingir incólume o passeio oposto. Aí se firmou ofegante, e enquanto ofegava não alcançou evitar a interrogação que ameaçava corroê-lo por dentro: por que razão, na realidade, tinha ele atravessado a estrada?
O Corvo:
O corvo contempla-me sem cessar, negro como eu o contemplo a ele, soturno como cada dia que me vai passando. Não se trata do corvo de Poe, este é um bicho mais calado, que nem se dá ao trabalho de me dar os bons dias, quanto mais de me lançar um casual “Nevermore”. E todavia tudo nele, tudo menos a sua voz, tudo vaticina o meu fim, e me diz que tudo acabou já, e jamais voltará. O corvo seria a minha condenação, se a condenação não tivesse voz.
Tem os olhos vermelhos como carvões, aqueles carvões do Inferno que não existe, não depois da nossa morte. O Inferno vive-se neste mundo, e tem penas muito mais duras que os veros tições do Inferno, vermelhos como os olhos do corvo.
As patas do corvo têm unhas que se cravam na minha carne, enquanto o seu bico me despedaça o coração. Não é por acaso que o corvo me mata, o corvo mata-me porque o quer fazer. E acaba por ser bem sucedido, para além de tudo.
O corvo é um pássaro engraçado, e dá um bom animal de estimação.
sábado, 1 de maio de 2010
Raiva!
Há dias em que, toda a gente o sabe, mais valia ter logo começado por não tirar os cornos da almofada. Dias em que as coisas correm mal, em que o mundo não nos grama, em que só falta mesmo vir um cão e mijar-nos para a perna. Ou então as coisas não são assim tão más como parecem, e somos nós que reagimos epidermicamente a elas, e levamos a mal a mais pequena coisa. Passei hoje um dia desses, e assalta-me a fundada suspeita de que o fenómeno se prolongará por todo o fim-de-semana. Em resumo, sinto-me enraivecido.
A raiva é uma coisa bem diferente da depressão, do aborrecimento, da tristeza ou do descontentamento. Nada disso, a raiva é um vulcão primevo que nos ferve as entranhas, nos cerra os punhos e endurece as mandíbulas, que faz encordoar tendões e pulsar veias que de uso se mantêm discretamente ocultas. É uma vontade de espancar e partir e destruir e escavacar, de negar toda a racionalidade com uma caçadeira em punho, de fundamentar argumentos com uma cadeira pelos cornos abaixo de quem deles discorde.
Não se trata sequer de algo útil ou aceitável, pois não é uma raiva dirigida contra um objectivo quiçá merecedor de tais ataques. Não quer isto dizer que a raiva se não dirija a alvos, mas são alvos escolhidos apenas por capricho, por escolha subjectiva e pessoal, pelo puro enfartamento de sofrer sempre os mesmos jorros fecais sobre uma existência de si própria merdosa. E quando não há já reacção que nos valha, recorremos à raiva como última escolha, ou pelo menos penúltima. Ou então não recorremos, mas algo dentro de nós o acaba por fazer.
Hoje estou enraivecido. Os prognósticos, como se diz em meteorologia, apontam para uma continuação das mesmas condições nos próximos dias. Haverá decerto estragos, que coisas destas nunca passam sem deixar a sua marca, mas não consta que a Prevenção Civil tenha sido posta em alerta. E com boas razões, que nada que aconteça comigo passará de uma mera tempestade local. Mas não reputaria aconselhável estar nesse local, este fim-de-semana.
Só não me digam que estou errado, que não tenho razão. Isto é apenas uma pequena entrada intimista, que descreve um estado de espírito. E eu não tenho qualquer razão. Tenho apenas raiva!
A raiva é uma coisa bem diferente da depressão, do aborrecimento, da tristeza ou do descontentamento. Nada disso, a raiva é um vulcão primevo que nos ferve as entranhas, nos cerra os punhos e endurece as mandíbulas, que faz encordoar tendões e pulsar veias que de uso se mantêm discretamente ocultas. É uma vontade de espancar e partir e destruir e escavacar, de negar toda a racionalidade com uma caçadeira em punho, de fundamentar argumentos com uma cadeira pelos cornos abaixo de quem deles discorde.
Não se trata sequer de algo útil ou aceitável, pois não é uma raiva dirigida contra um objectivo quiçá merecedor de tais ataques. Não quer isto dizer que a raiva se não dirija a alvos, mas são alvos escolhidos apenas por capricho, por escolha subjectiva e pessoal, pelo puro enfartamento de sofrer sempre os mesmos jorros fecais sobre uma existência de si própria merdosa. E quando não há já reacção que nos valha, recorremos à raiva como última escolha, ou pelo menos penúltima. Ou então não recorremos, mas algo dentro de nós o acaba por fazer.
Hoje estou enraivecido. Os prognósticos, como se diz em meteorologia, apontam para uma continuação das mesmas condições nos próximos dias. Haverá decerto estragos, que coisas destas nunca passam sem deixar a sua marca, mas não consta que a Prevenção Civil tenha sido posta em alerta. E com boas razões, que nada que aconteça comigo passará de uma mera tempestade local. Mas não reputaria aconselhável estar nesse local, este fim-de-semana.
Só não me digam que estou errado, que não tenho razão. Isto é apenas uma pequena entrada intimista, que descreve um estado de espírito. E eu não tenho qualquer razão. Tenho apenas raiva!
Subscrever:
Mensagens (Atom)