segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Tolerâncias de Ponto: carta aberta ao Primeiro-Ministro.

Exmo. Sr. Primeiro-Ministro,

Esperando que esta o encontre de boa saúde, e na muito prezada companhia de todos os seus, tem a presente missiva a intenção de respeitosamente trazer ao conhecimento de Vexa. que, em data a combinar durante as próximas semanas, tenciono soltar um flato.

Não se receia aqui um evento de bufa maior, e é de crer que no todo não se venha a ultrapassar o simples traque. No entanto, considerando que é política do governo que Vexa. superiormente dirige conceder tolerância de ponto à função pública de cada vez que alguém dá um peido, gostaria de combinar previamente com o competente gabinete a melhor data para o evento, por forma a minimizar os transtornos que o mesmo possa causar ao público em geral.

Sendo o peido uma ocupação mais disruptiva da ordem pública do que qualquer cimeira da NATO, e contando ao mesmo tempo com muito mais adeptos do que Sua Santidade o Papa Bento XVI, seria talvez boa ideia considerar-se desde já uma tolerância alargada, que ao próprio dia da função somasse a tarde da véspera e a manhã do dia seguinte, salvaguardando assim a justa proporção das coisas.

Não despiciendo é ainda o facto de não ser o peido uma função exclusiva deste ou daquele cidadão ou momento, antes se tratando de um episódio que tende a ocorrer com alguma frequência. A meu ver, esta questão só pode ser endereçada de uma forma justa pela via de uma tolerância de ponto em regime de continuidade, que se prolongará até que termine a flatulência das nossas classes dirigentes. Talvez então os políticos finalmente esvaziados se decidam a produzir mais do que ar quente, e fazer por fim alguma coisa desta merda.

Grato e obrigado, pede deferimento o cidadão,

Nuno Baptista Coelho.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Lord of the Wrongs.

Já não acredito em nada. Fui acreditando em menos coisas a cada dia, e hoje não acredito mesmo em nada. É uma chatice não acreditar em nada, fica-se logo sem grande coisa para dizer, até porque não há grande coisa depois do nada. Queria contar uma história, acho que vou mesmo contá-la, mas honestamente não sei se acredito nela. E, no entanto...

Esgueirando-se por entre jornas de um Outono molhado de Inverno, deu-se por artes de fadas e magia um dia radioso de sol e alegria, um dia de fresco Verão, leve e prazenteiro. Por todo esse improvável dia perpassava uma felicidade e leveza como só se encontra em terras de legenda, nas mágicas terras dos elfos e hobbits. E deu-se justamente que um hobbit, ou pelo menos quase um hobbit, uma criatura tão insignificante como um hobbit, mas com um penteado mais decente, adentrou as fronteiras do reino vizinho, terras de Lisboa e Japão, nações estas quase irmãs.

Tal como o seu congénere de uma saga semelhante, também este buscava um vulcão onde derreter o seu anel, aquele anel de poder que forças diabólicas haviam em longínquos tempos forjado. O vulcão não se fez rogado, e nele o hobbit se perdeu ganhando-se a si próprio. Por longos momentos (quem saberá dizer quantos, senão quão poucos), se foram aqueles dois seres de quimera e fantasia ardendo um no outro, a fulgurante chama velada em propício desfiladeiro. Foi a alegria das chamas rompida pelas inesperadas fauces de um monstro, tenebrosa criatura que do nada surdia para os apavorar. O Vulcão gelou por momentos, chegou o hobbit a cambalear desamparado, mas um no outro se recompuseram, e à avantesma opuseram fero combate, do qual saiu malferida a insalubre criatura. E assim se apartaram os feéricos amantes, o vulcão para o seu ígneo leito, o hobbit para as suas florestas enfeitiçadas.

Apenas não estavam lá, essas florestas. Em vez dos seus verdejantes esgalhos e ramagens, viu-se o hobbit projectado em árido deserto, como pela mão de malévolo ciclone. E ainda lá anda, a criatura dos bosques e florestas, arquejando na privação de florestas e bosques. Valha-nos pelo menos que aprendeu a sua lição, e não acredita mais em coisa nenhuma. Descreu de ramagens e pássaros, de sóis radiosos brilhando em riachos cristalinos, de luas túrgidas revendo-se por noites claras em lagoas profundas e radiosas, onde inspiradas rãs fazem concerto com grilos e cigarras. Em nada disto o hobbit acredita já, em nada senão no deserto sem fim, a sua sina que negros fados teceram, e sobretudo no seu vulcão, o vulcão que é a sua outra metade, que nunca deixará de ser o seu outro eu, a sua vida e razão de ser. E quem saberá dizer, nestes confusos meandros de fantasia e ilusão, se não será mais feliz assim!

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Alerta!

Às armas, todos em chusma e sem temor nem quebranto, que a hora é de heroísmos. Basta de indiferenças moles, chega de prudência acinzentada, é findo o tempo do decoro sem cor e do bom-tom que não alcança mais que flácidos e gangrenados tons que de bom nada têm. Cavalguemos sob flâmulas multicolores, bradando o grito de Rolando, e em chusmas ataquemos o único inimigo, a nossa morte em vida. Prestes, lanceiros, e vós arqueiros retesai bem as cordas, que o adversário é falho de carne que se deixe retalhar pela lâmina, como de resto convém ao vero esqueleto de Tanatos, e faz-se mister que o ferro o despedace certeiro pelo osso, ou ainda o veremos triunfar. Às armas, sobre as selas de engrinaldados corcéis, que a batalha se trava entre a vida e a inércia, e quem sabe se não será esta a batalha final. Às armas, e morra quem hesitar, que quem hesita já está morto!

O inimigo, prudente e covarde, não atacou desassombradamente em campo aberto, antes se esgueirou calado pelas planícies em volta, cercando e cerrando, tudo cobrindo com o seu manto de silêncio. Acostumou as mesnadas a essa fétida quietude, ao ponto de se sobressaltarem já com o menor ruído, e emudecerem elas próprias as buzinas feitas para ecoar valorosamente no campo de lides. Olhai-os agora, tíbios e timoratos de tudo o que os perturbe. O disparo do arcabuz fá-los tremer, e o trovejar dos canhões lança-os em pânico nos braços uns dos outros, como se assim se almofadassem contra os ventos de mudança. Não ousam já dar um passo que o inimigo não sancione, não murmuram uma sílaba que não conste da cartilha. Se amam, sufocam o amor que estrebucha e se queda inerte no altar das convenções. Sofrendo acaso o dever de amar, glorificam a sua ficção para melhor servirem a estabilidade, a conveniência, a sua própria aniquilação. Pois bem, chega!

Se é já passado o tempo dos guerreiros, das armaduras e cores de batalha, sejamos então palhaços. Troquemos as flâmulas multicolores por vestes garridas e pintadas de arco-íris, seja a gargalhada o nosso brado de guerra, e o desprezo a arrogância aguerrida dos nossos dias. Saiamos desavergonhadamente à rua, gritando o que realmente queremos e sentimos, esmagando com passo marcial tudo o que devemos sentir e querer. Vivamos, porque a vida não é algo que nos pertença: é uma batalha que se ganha em cada dia em que não morremos!

E que tu, minha princesa, sejas a recompensa que busco no cimo da torre mais alta, aquela onde só heróis podem chegar.

sábado, 7 de agosto de 2010

O pássaro esparvoado.

O pássaro esparvoado raramente prestava atenção ao que quer que fosse. Um optimismo perfeitamente ridículo dirigia o seu voo em direcção a tudo o que lhe parecesse um bom destino.

O pássaro esparvoado voou num êxtase de alegria em direcção às altas torres que se erguiam sobre as muralhas, pináculos de luz e esplendor, pensou. Tanta diligência pôs na sua empresa que acabou por voar direito às torres, que de imediato desabaram sobre ele.

O pássaro esparvoado não fará mais voos optimistas. Ajuizando pelo estado da asa que desponta de sob uma pedra mais pesada, é mesmo duvidoso que volte a alçar o voo. E antes assim, é bem melhor um pássaro esmagado que um que seja esparvoadamente optimista. O pássaro ganhou juízo, e já nem responde pelo nome de melro. E não é de crer que se meta a voar tão cedo.

sábado, 31 de julho de 2010

Liturgia.

− Senhor, dizei uma só palavra, e eu serei salvo.
− Vai-te lixar!
− Mas isso não é uma só palavra, Senhor, são três.
− São duas, burro. “Vai-te” conta como uma só palavra.
− Rendo-me à Vossa sabedoria, Senhor. Mas ainda assim, duas palavras não são uma só.
− Isso está correcto, mas os Meus caminhos são misteriosos.
− E além disso… é certo que Vós sois o Caminho, a Verdade e a Vida, mas dizer-me que me vá lixar, enfim, parece-me que…
− Qual foi a parte de “Caminhos Misteriosos” que não percebeste?
− Compreendo agora, Senhor. Então, quando dizeis “Vai-te lixar”, isso significa…
− Significa que quero que te vás lixar. E agora deixa-me em paz, estou a descansar ao Sétimo Dia.
− Mas hoje é terça-feira, Senhor!
− E um pano encharcado nas ventas? Queres um pano encharcado nas ventas?

Oremos!

terça-feira, 6 de julho de 2010

Da importância do Feng Shui no jogo da malha.

Prosseguindo aqui a nossa jornada de compreensão do oculto, daquela dimensão do Universo que transcende aquilo que os nossos pobres sentidos podem captar, e se esconde para além da mera razão com o astuto estratagema de simplesmente não levar a lado nenhum, falaremos um pouco da milenar arte do Feng Shui.

A própria expressão diz tudo. Feng (mocada) Shui (canela) é um termo que deriva do hábito oriental de usar aquelas mesas baixinhas onde inevitavelmente tropeçamos, ritual a que se segue um divertido percurso feito ao pé-coxinho, e acompanhado por aquelas riquíssimas expressões que a banda desenhada tão correctamente traduz em caracteres chineses. O que apenas prova que tudo isto está relacionado.

Algumas mentes mais prosaicas preferem definir o Feng Shui como sendo, muito simplesmente, a antiga arte de dispor o mobiliário de forma a canalizar da forma mais eficaz as correntes ocultas de boa sorte, que desse modo irão beneficiar o proprietário da dita mobília. Se não é exactamente isto, pelo menos parece-me bem inventado, e não totalmente desprovido de sentido. Com efeito, em me acontecendo ter uma convidada jeitosa do sexo oposto (oposto ao meu, não ao dela), julgo que me trará muito mais sorte um sofá-cama estrategicamente colocado do que, digamos, uma escrivaninha renascentista. Não quero com isto dizer que o Feng Shui se resuma a estas meras questões de alcova, há toda uma miríade de outros detalhes a ter em conta. As cadeiras, por exemplo, devem ser colocadas no chão, para máxima eficácia de uso, e é aconselhável que as portas dos armários e louceiros abram para fora, em vez de, por exemplo, contra a parede.

Pergunta-me agora o paciente leitor, isto é, aquele que chegou até este ponto do texto, mas pergunta-me com toda a cordialidade, dizia eu, que raio tem tudo isto a ver com o jogo da malha? Pois bem, caríssimo leitor, são assuntos intimamente relacionados, diria mesmo que inseparáveis. Para quem duvide desta afirmação, recomendo-lhe que experimente jogar uma partida de malha numa sala densamente mobilada, e que me conte depois como correu. Para minimizar os prejuízos, é aconselhável usar móveis que estejam ainda dentro da garantia. Jarrões chineses e peças de cristal poderão acrescentar toda uma vertente lúdica ao desafio, sobretudo se forem propriedade de outra pessoa qualquer.

Divirtam-se, bom jogo, e boa sorte para todos.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Astrologia, essa ciência perdida.

Está muito na moda, nestes tempos ditos científicos, menosprezar as milenares verdades espirituais, trazidas até nós, mortais sem rumo, por práticas ancestrais como a astrologia, o tarot e o jogo da malha. Proponho-me, numa breve série de posts, restituir a dignidade e a importância a todos estes métodos de conhecimento, começando hoje pela astrologia. Obedecendo a diversos pedidos, o próximo post será dedicado ao jogo da malha.

Pretendem uns quantos iluminados que não há qualquer fundo de verdade na astrologia, e que ninharias absurdas como o código genético e o facto de ter sido abusado em criança serão mais determinantes na formação do indivíduo do que, digamos, o paradeiro de Plutão no momento em que a respectiva mãe abriu as pernas, arrependida já de o ter feito nove meses antes. Ora bem, nada há de mais disparatado.

Os planetas são tudo para nós, comandam o nosso destino e determinam a nossa vida. A única razão porque temos DNA é o facto de ser extremamente difícil colocar um planeta como, digamos, Úrano, dentro do núcleo de uma célula de tamanho vulgar. Assim sendo, o Ser Supremo (não confundir com o ser supremo, que isto sem as maiúsculas perde o efeito todo), mas dizíamos, o Ser Supremo determinou que os planetas exercessem à distância o seu efeito modelador. O que acabou por se revelar uma decisão bastante prática, já que os planetas disponíveis, qualquer coisa como nove ou dez, ficam bastante aquém da procura, que se cifra em cerca de sete mil milhões de almas, todas elas munidas dos respectivos corpos.

A influência dos planetas é patente para qualquer pessoa que encare o assunto sem preconceitos. Assim, verifica-se vezes sem conta que pessoas nascidas sob o signo de Saturno são saturninas, sendo diabólicas as que nascem na sombra de Plutão, quentes as que têm Mercúrio por ascendente, áridas as que dependem de Marte, monstruosamente obesas as que viram o mundo quando Júpiter imperava, e se conhecerem alguma miúda gira que tenha nascido sob a égide de Vénus, mandem-na ter comigo, que eu também dou aulas particulares.

Mas os planetas, importantes como são, não esgotam a essência da astrologia. As constelações desempenham um papel fundamental nestes casos, e é aqui impossível não denunciar as intenções sinistras de todos aqueles que, para servir os seus interesses particulares, persistem em omitir algumas das mais importantes. Só a título de exemplo, toda a gente conhece a Ursa Maior e a Ursa Menor, mas quantas vezes se fala da Ursa Bebé, e da constelação da Miúda Assanhada Com Os Caracóis Dourados Que Lhes Vai Comer As Papas? Estas são sempre omitidas. Como prova, desafio qualquer leitor a dizer-me que já tinha ouvido falar nelas.

Vez por outra ainda se verifica uma ou outra fuga: ainda recentemente, um proeminente ornitólogo cometeu o imperdoável solecismo de referir a constelação do Urso Barnabé, o que lhe valeu o ostracismo generalizado. É de crer que venha a pagar o preço da sua ousadia, e nunca mais volte a escrever sobre pássaros. Mas é já tempo de parar com este silêncio cúmplice, e divulgar a verdade.

Ora recoste-se o leitor num verdejante relvado, por uma límpida noite de Verão. Liberte a sua mente das preocupações mundanas, coisas como as contas cada vez mais altas, os problemas que o assolam no trabalho, e o facto de ter cagado irremediavelmente o seu melhor fato claro, e contemple as estrelas que brilham sobre si. Cedo compreenderá que há muitas constelações, muito mais do que as que lhe foram descritas na escola. Forçoso é reconhecer que nem todas têm a mesma importância. Aquelas três estrelas que ali ao fundo se perfilam num triângulo estreito, uma de cada lado e a terceira em baixo, a meio, não são para levar a sério – trata-se da constelação da Tanga. Mas muitas há que são predominantes nos destinos da humanidade. Veja-se a constelação do saca-rolhas, aquelas sete estrelas numa perfeita linha recta. Tome-se como exemplo a constelação da Trotineta – duas estrelas que ocupam, com uma precisão inacreditável, o lugar dos cubos das rodas. Atente-se na constelação do vendedor de pipocas, uma linha recta com uma estrela por cima, figurando aquela última pipoca, metáfora do destino último da humanidade. Concentremo-nos por último nessa constelação mais complexa, o Gay Com Hemorróidas. Haverá coisa mais expressiva que aqueles dois segmentos verticais que aparentam encostar-se, e do meio dos quais nasce uma chuva de estrelas cadentes? Quem, numa perfeita honestidade, poderá negar intenção e propósito a este espectáculo celestial?

Mas e os homens, perguntam-me. Em que medida esse fulgor de átomos de hidrogénio que diariamente encenam o seu orgasmo nuclear nos pode afectar a nós, pobres mortais? Pois bem, é extremamente simples. Todo este bailado cósmico vem a traduzir-se em doze signos, pelos quais se divide a humana gente. Cada signo tem o seu destino próprio, bem conhecido daqueles que estudaram a sabedoria dos antigos mestres, que a adquiriram dos seus antigos mestres, o que torna pouco claro de onde veio aquilo em primeiro lugar. Mas é sabedoria, pelo que são fúteis quaisquer questões adicionais.

Isto de dividir a população em doze partes iguais tem pelo menos duas tremendas vantagens. Por um lado facilita as previsões – é mais fácil prever o futuro de doze do que de sete mil milhões. Por outro lado, dificulta as críticas. Tudo considerado, ninguém gosta de usar a palavra “duodécimos”. Não, a sério, é uma palavra soez. Na escola onde eu andei, podia-se apanhar uma tareia só por dizer coisas bem mais inofensivas do que “duodécimos”.

Mas as vantagens dos signos são inegáveis. Lendo um trivial horóscopo, ficamos a saber que, de cada grupo de mil e duzentas pessoas, uma centena vai encontrar o verdadeiro amor, outra centena vai perder o emprego, uma terceira centena, enfim, vai partir um membro importante numas férias na neve. Fosse eu administrador de uma empresa com mil e duzentos trabalhadores, e faria questão de me manter a par dos horóscopos. Começava por despedir os cem condenados ao desemprego, que diabo, o horóscopo já os devia ter avisado. Depois despedia os cem da perna partida, que a fábrica não é nenhum asilo de inválidos. A esses juntaria os cem apaixonados, é sabido que um homem apaixonado não produz. Depois disso era uma questão de acompanhar os horóscopos, até encontrar um signo que dissesse, “ a mulher do seu patrão vai apaixonar-se por si”. Quando esse momento chegasse só teria de organizar uma carreira de tiro, com os nativos desse signo a desempenharem um papel de destaque.

Nota: não pretendi ofender ninguém com este post. Os adeptos da astrologia têm tanto direito de acreditar nela como eu tenho o direito de dizer que é uma palermice. Liberdade é isso mesmo. E enquanto os astrólogos não formarem uma organização destinada a sacar ao estado uma fatia dos meus impostos, não tenho problema nenhum com eles. Para as pessoas que prezo, e que sei que têm uma opinião diferente sobre o tema, faço minhas as palavras de John Lennon: “whatever get’s you through the night, it’s alright”.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Afinal ainda há mais pássaros.

A Cotovia:

Em toda esta série de posts de carácter marcadamente ornitológico, ressalta de súbito uma omissão estranha e imperdoável. Refiro-me, como é evidente, à maviosa e maravilhosa cotovia, uma das mais prodigiosas criaturas da natureza. Tomemos então a pequena ave nas nossas mãos, e falemos um pouco sobre ela.

É fácil tomar a cotovia nas mãos: é um pássaro pequeno e terno, que se afeiçoa à palma da nossa mão, onde se deixa ficar aconchegado. Que não se tome isto, todavia, como indício de um carácter submisso. A cotovia tem uma forte personalidade, tem ideias muito próprias, e só se submete quando assim o decide.

Astrologicamente, uma das uniões mais interessantes que podemos encontrar entre aves é aquela que se dá entre a cotovia e o melro. Com efeito, o ciclo de postura do melro faz com que todos os seus exemplares nasçam sob o signo da Girafa Mijona. Já a cotovia, reproduzindo-se em épocas diferentes, descobre a luz do dia naquele momento tão especial do ano, quando Saturno se encontra na constelação do Urso Barnabé, mas mortinho por se pôr a andar dali para fora, ainda que lá deixe os anéis. Não é preciso perceber muito de astrologia para ver de imediato toda a multidão de contrastes e semelhanças de que estas criaturas são capazes, quando se juntam.

A cotovia, já aqui o sugerimos, é uma ave de carácter complexo e intrincado. Pode aninhar-se na nossa mão num momento, e alçar um voo sustentado a bicadas no momento seguinte. Vemo-la voar para longe de nós, e a mágoa da sua partida dói mais que todas as bicadas. Ficamos aturdidos a olhar para as mãos vazias, vazios nós mesmos do canto de todos os pássaros. Mas se a cotovia volta, a maravilha do momento sara de pronto as nossas feridas, e rendemo-nos a esse canto que nos encanta, e afagamos avaramente a bela ave, jurando nunca mais permitir que tal volte a acontecer. Mesmo sabendo que vai acontecer.

Quem tem uma cotovia não se preocupa com essas minudências. Quem tem uma cotovia sabe o que tem, e sabe que não precisa de mais nada.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O fim dos pássaros.

Não haverá mais pássaros. Pairavam ainda dois ou três para juntar à colecção, mas jamais verão a luz do dia. Resta-lhes agora repousar no fundo de uma gaveta, ou onde os enviar o botão de Delete. Os meus pássaros estão extintos, e pela minha mão.

O mundo perdeu a cor e o som, tomou no seu lugar um cinzento angustiante, de uma angústia que nos aperta e espreme o coração, e onde só ressoa um silêncio que me dói. Enfim, é este agora o meu mundo, e todo feito pela minha mão. Fui eu que descorei estes cinzentos, fui eu que extingui aquele som que brilhava. É neste mundo que fiz que eu deverei viver agora.

Não me resta mais agora que suportar a tristeza de um mundo eriçado de árvores esparsas e lúgubres – noto agora que na maioria são figueiras, onde nem uma folha reverdeja. A figueira é uma árvore ligada à traição, o que calha bem aqui. Matei o último pássaro do mundo, e não sei se alguma vez compreenderei porque o fiz.

domingo, 9 de maio de 2010

Mais passarada.

O Melro:

Já muitas vezes me têm ocorrido, naqueles momentos em que o pensamento vagueia ocioso como um sem-abrigo numa tarde de Verão, os inúmeros e inquietantes pontos de semelhança que existem entre mim e o melro. Para começar, temos ambos penas pretas e um bico amarelo (sobretudo o melro). Também voamos ambos, um com as asas da imaginação, outro com asas mesmo verdadeiras, mas tudo isso é voo. É claro que há pontos de divergência, como seja o facto de se conhecerem poucos exemplares de melros que pesem mais de oitenta quilos, mas na essência somos muito semelhantes.

Gosto sobretudo de ver o melro levantar voo. Não vale a pena pormo-nos a olhar para um melro e esperar de imediato um bater de asas de pássaro liberto. Não, o melro demora-se nos seus passeios e deambulações, pica aqui e esgravata acolá, até que vem a hora de se alçar pelos ares. Quando isso se dá, sabemos imediatamente que chegou o momento do voo. Torna-se por demais evidente o instante em que ele se vai erguer num bater turbulento de asas, e que direcção tomará. É igualmente evidente ser o melro o único que tudo isso ignora, pelo que parte sempre num voo espantado de quem não estava nada à espera que aquilo lhe acontecesse, não aqui e agora, pelo menos, e sem ter sequer uma ideia de qual o seu destino. Aprecio isso no melro, é sempre bom não estarmos sozinhos em assuntos destes.

Outro ponto em comum é que a maioria das pessoas que apreciam melros prefere apreciá-los à distância. Um melro a passear pelo jardim é uma bonita visão, mas um melro empoleirado no ombro é uma ideia inquietante, a convocar o receio de cagadas diversas. E não deixam de ter razão. Um melro que se aproxime demais é bicho que convém enxotar.

O melro é um animal interessante sem ser bonito, intrigante sem ser interessante, e irrelevante o suficiente para que não valha a pena perdermos tempo a intrigarmo-nos. Eu gosto de melros, e não me espanta que os haja com mais de oitenta quilos.

sábado, 8 de maio de 2010

Pássaros.

O Frango:

O frango firmou-se na borda do passeio, unhas cravadas no rebordo empedrado, e olhou para o seu lado esquerdo. Olhou depois para a direita, de novo para a esquerda, e depois repetiu tudo, como se não soubesse que outra coisa fazer. Passavam carros em todas as direcções.

O frango firmou-se ainda melhor, aguardou pacientemente uma pausa no trânsito, e lançou-se em passo de corrida, corrida essa que terminou no traço contínuo que dividia a estrada. Aí se deteve, bico exaurido do ritmo cardíaco acelerado, penas ameaçando voar no sopro dos carros que se precipitavam à sua volta, correndo num sentido os que lhe passavam pela frente, no outro os que o roçavam por trás. O frango firmou as unhas no asfalto, esforçando-se por não ser arrastado por todas aquelas correntes desencontradas.

O trânsito deste lado era pior, o que obrigou o frango a aguardar longamente, até que surgisse uma aberta. Esta foi bastante estreita, e só a rapidez do frango lhe permitiu atingir incólume o passeio oposto. Aí se firmou ofegante, e enquanto ofegava não alcançou evitar a interrogação que ameaçava corroê-lo por dentro: por que razão, na realidade, tinha ele atravessado a estrada?

O Corvo:

O corvo contempla-me sem cessar, negro como eu o contemplo a ele, soturno como cada dia que me vai passando. Não se trata do corvo de Poe, este é um bicho mais calado, que nem se dá ao trabalho de me dar os bons dias, quanto mais de me lançar um casual “Nevermore”. E todavia tudo nele, tudo menos a sua voz, tudo vaticina o meu fim, e me diz que tudo acabou já, e jamais voltará. O corvo seria a minha condenação, se a condenação não tivesse voz.

Tem os olhos vermelhos como carvões, aqueles carvões do Inferno que não existe, não depois da nossa morte. O Inferno vive-se neste mundo, e tem penas muito mais duras que os veros tições do Inferno, vermelhos como os olhos do corvo.

As patas do corvo têm unhas que se cravam na minha carne, enquanto o seu bico me despedaça o coração. Não é por acaso que o corvo me mata, o corvo mata-me porque o quer fazer. E acaba por ser bem sucedido, para além de tudo.

O corvo é um pássaro engraçado, e dá um bom animal de estimação.

sábado, 1 de maio de 2010

Raiva!

Há dias em que, toda a gente o sabe, mais valia ter logo começado por não tirar os cornos da almofada. Dias em que as coisas correm mal, em que o mundo não nos grama, em que só falta mesmo vir um cão e mijar-nos para a perna. Ou então as coisas não são assim tão más como parecem, e somos nós que reagimos epidermicamente a elas, e levamos a mal a mais pequena coisa. Passei hoje um dia desses, e assalta-me a fundada suspeita de que o fenómeno se prolongará por todo o fim-de-semana. Em resumo, sinto-me enraivecido.

A raiva é uma coisa bem diferente da depressão, do aborrecimento, da tristeza ou do descontentamento. Nada disso, a raiva é um vulcão primevo que nos ferve as entranhas, nos cerra os punhos e endurece as mandíbulas, que faz encordoar tendões e pulsar veias que de uso se mantêm discretamente ocultas. É uma vontade de espancar e partir e destruir e escavacar, de negar toda a racionalidade com uma caçadeira em punho, de fundamentar argumentos com uma cadeira pelos cornos abaixo de quem deles discorde.

Não se trata sequer de algo útil ou aceitável, pois não é uma raiva dirigida contra um objectivo quiçá merecedor de tais ataques. Não quer isto dizer que a raiva se não dirija a alvos, mas são alvos escolhidos apenas por capricho, por escolha subjectiva e pessoal, pelo puro enfartamento de sofrer sempre os mesmos jorros fecais sobre uma existência de si própria merdosa. E quando não há já reacção que nos valha, recorremos à raiva como última escolha, ou pelo menos penúltima. Ou então não recorremos, mas algo dentro de nós o acaba por fazer.

Hoje estou enraivecido. Os prognósticos, como se diz em meteorologia, apontam para uma continuação das mesmas condições nos próximos dias. Haverá decerto estragos, que coisas destas nunca passam sem deixar a sua marca, mas não consta que a Prevenção Civil tenha sido posta em alerta. E com boas razões, que nada que aconteça comigo passará de uma mera tempestade local. Mas não reputaria aconselhável estar nesse local, este fim-de-semana.

Só não me digam que estou errado, que não tenho razão. Isto é apenas uma pequena entrada intimista, que descreve um estado de espírito. E eu não tenho qualquer razão. Tenho apenas raiva!

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Reencontro.

Hoje, uma fada pousou no meu braço:

Eu, mais habituado a outras variações fonéticas da palavra, isto não se dando o caso de serem apenas mosquitos, dei ao desprezo a forma silfídica que não cessava contudo de zumbir. Veio a dita forma, de resto bem agradável, e para mais escassa no vestir, a revelar-se uma fada que encantou o meu dia.

Conduziu-me pelo seu braço pequenino a um éden terrestre, tasca que de resto sobejamente conhecia. Aí regou-me a mim e às amigas que comigo se sentaram, ocupando-se unicamente nessa árdua tarefa de serem minhas amigas, desse néctar que as humanas gentes se vêm forçadas a destilar da cevada, e com resultados francamente positivos, pois o néctar que o bebam os anjos, e que lhes faça um bom proveito. Depois, alguém desligou o mundo, e entrei no sonho.

Voltei num relance a ter vinte anos. Não foi todavia sozinho que embarquei nessa viagem, todos voltamos a ter vinte anos. Num repente, vimo-nos três jovens num mundo jovem de novo, num mundo cuja juventude apreciámos do alto da nossa maturidade, e sobre o qual disparatámos. Rimos, abraçámo-nos, e acho que a Ana chegou a dar pontapés a várias pessoas. Numa palavra, fomos de novo felizes.

Depois a cerveja acabou, as horas expiraram, que os deveres não perdoam, e partimos cada um para seu lado, todos compenetrados da vida quotidiana que nos esperava, cada um ciente de que reencontros como este são a excepção, e nunca a regra.

Trocámos mensagens, trocámos emails, e acabámos convencidos que daríamos um dia a volta a isto, que estes reencontros ainda viriam a ser a regra e não a excepção. A fada no meu braço acenou em acordo, e partimos todos com uma alma nova, isto os que já tinham uma alma velha para oferecer em troca. Os desprovidos como eu ganharam esperança, e aguardam o futuro com mais optimismo, ou apenas com algum, o que não deixa de ser uma melhoria.

A todas as criaturas de fábula que se me revelaram hoje, quero aqui deixar o meu mais sentido Obrigado. Confesso que não sabia que vocês existiam.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Sem título.

É mentira, o título existe, e está mesmo dentro do poema. Título este que não deixa de ser um abuso e um atrevimento. Mas que hei-de fazer, se sou mesmo assim? E este post, pelo menos, não é deprimente…

Se um dia eu achasse, num repente,
Alma de mim gémea, diferente embora igual,
Nada negando sem exame, tudo pronta a conhecer,
Dando-se como é, tal como eu me dou!
Resistiria eu, e tudo esqueceria?
Acho que sim… mas duvido!

terça-feira, 30 de março de 2010

Missa de Sétimo Dia.

A numerologia tem desde sempre fascinado a humanidade, e o 7 é aquele número místico entre todos, quantidade sempre recorrente nestes cálculos exotéricos. Conta-se a história do homem que passou todo o seu dia perseguido por esse mesmo número, que a qualquer despropósito lhe aparecia. Finalmente rendido às evidências, acabou por gastar todas as suas poupanças (eram 7 mil dólares), numa aposta do hipódromo; todo o dinheiro que tinha, apostado no cavalo número 7, na sétima corrida. Nem a numerologia nem o cavalo o desiludiram, pelo que o bicho veio a terminar a prova em sétimo lugar! Julgo que há provavelmente uma moral qualquer nesta história.

Vem tudo isto a propósito da próxima quinta-feira santa, que este ano calha adequadamente no dia das mentiras, dia em que se celebram também os sete meses sobre o septuagésimo aniversário da tomada de Varsóvia, que marcou o início da segunda guerra mundial. Setenta anos volvidos sobre o esmagamento da capital polaca pelos exércitos alemães, caí eu próprio, esmagado por coisa nenhuma que se visse. Passando agora sete meses sobre a infausta data, parece-me apropriada uma missa de sétimo dia (sim, eu sei que as unidades são confusas, mas a numerologia é assim mesmo, misteriosa e cabalística).

Tratando-se de uma missa de corpo presente, e para mais de corpo falante, e exibindo toda a aparência de vida, isto se descontarmos a vida toda que se retirou de trás da aparência, deixando esta entregue ao que pudesse fazer por sua conta, deu-se aqui a oportunidade sem dúvida rara de colher um depoimento em primeira mão por parte do falecido. E foi desse modo que me vieram perguntar em que consistia, de facto, esta coisa de perambular cadáver pelo mundo dos vivos. A pergunta deixou-me confuso e indeciso, não pela sua especial dificuldade, mas porque tudo hoje em dia me deixa confuso e indeciso. Se é verdade que morremos por partes, então estou seguro de que as certezas são a primeira coisa a morrer, e mortas as certezas não fica nada, nem sequer a dúvida – só pode ter dúvidas quem tiver certezas. Não, depois de morta a última certeza, fica apenas uma apatia confusa e indiferente, que tão depressa se apresta a salvar a pátria como a morrer pelos seus inimigos, conforme o que aconteça primeiro.

Ganhei um pouco de tempo empurrando com um bom golo de brandy um molho de comprimidos, já não sei bem quais, mas julgo que seriam de facto os correspondentes a essa hora. É difícil distingui-los, pois são uma quantidade deles, de todas as formas e cores, e mais não tendo de comum que a frase inscrita na embalagem, “não ingerir em simultâneo com álcool”. Depois desviei a conversa, e quis saber como eram as coisas vistas pelo outro prisma, que impressão fizera ao mundo o meu passamento. A resposta foi a esperada, Absolutamente nenhuma.

Quis que elaborassem, e não se fizeram rogados. A maioria das pessoas, explicaram-me, laborava na convicção de que eu estaria ainda vivo, talvez por serem as duas alternativas equivalentes, no seu entender. Os poucos que conheciam não ser eu mais já que um lémure, alguém que deixou já de ser, encaravam o facto com aquela resignação aliviada que por uso reservamos para aquelas desgraças lamentáveis que nos fizeram o favor de acontecer a outra pessoa qualquer. É assim, o que se há-de fazer, estamos todos sujeitos a lixarmo-nos um dia, desta vez foi ele, e se deus quiser nunca hei-de ser eu. E a vida continuou.

Cabisbaixo, aceitei o que já sabia. Inquiri ainda se podia ao menos tomar o meu estado de morto definitivo, o meu lugar competente naquele caixão da missa do sétimo dia. Mas responderam-me que nem pensasse nisso. Ao que parece, estava demasiado vivo de corpo para ser um morto, demasiado morto de alma para ser um vivo. Mas então? Então, responderam-me, faz como fizeste quando os tanques de Varsóvia te passaram por cima: aguenta-te, que outro remédio tens tu? Bebe uns copos, toma uns comprimidos, vai misturando isso tudo para ver no que dá. Olha, e para te ires entretendo, escreve umas merdas e publica-as. Não te vai servir de nada, nem esperes que alguém as leia, ou que as entenda se as ler, ou se interesse mesmo no caso de as entender, mas o que mais queres? Mal não te faz, e sempre ajuda a passar o tempo.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

The sweet bubbling cup

If you gaze at stars all night,
Weeping grieves you dare not name.
If from thyself you seek oblivion,
As from the hope you now forsake!

Then search no more in shallow cups
For an answer that rings true,
Scotch won’t do it, and beer sucks,
Mark my words: hemlock is the thing for you.

Socrates was a great man, good and wise,
And for that reason he got sacked.
Well, rather than argue and suffer fools,
He took the boiling cup, and his foes were smacked.

I’ve seen you fret over love and sweet bliss,
That immortal bond that defies Men’s wit;
Bogus, I tell you, not worth a rat’s piss,
Better drink your poison now, and get it over with.

Some recommend cyanide, a poison that’s more foul,
They say it’s sooner done, but that’s just plain jurassic.
Others pick a bullet, or simply slice their throat;
As for me, it’s hemlock; what can I say? I love a classic!

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

The show must go on

Um auto-retrato, em traços largos...

No mágico anfiteatro que por igual entretém miúdos e graúdos, triunfando sob a feérica iluminação multicolor, o palhaço domina e simboliza o circo. Em seu redor perfilam-se acrobatas e malabaristas, domadores e feras enjauladas, tudo o que inspira admiração e respeito, temor e reverência, mas o palhaço faz rir. Ninguém gosta particularmente do palhaço, mas toda a gente gosta de rir.

Cada pirueta suscita uma gargalhada, tem espertezas divertidas e fracassos hilariantes. Agora corre pela arena, perseguido pelos comparsas que disparam pistolas de estalinhos, sob cujas balas imaginárias se vai estorcendo em esgares de dor grotesca e caretas patéticas. Nas bancadas, um miúdo inquieta-se, mas logo o tranquilizam, os palhaços são só para rir, não são para levar a sério. Um estalinho mais forte, ressoando num eco mais férreo, pinta uma nódoa vermelha no fato do palhaço, logo abaixo da omoplata.

O trabalho do palhaço fica agora mais fácil, já não precisa de esforço para produzir careta após careta, e as gargalhadas aumentam. O miúdo volta a sobressaltar-se quando o vê cair e rebolar no chão, sobressalto de resto escusado, que bem se vê que o palhaço está só a brincar, como sobejamente provam os comparsas que o cercam, fingindo moê-lo de pauladas. Um silêncio hesita ainda pela tenda, logo no fim do acto, quando o palhaço se deixa ficar caído, e o pai do miúdo aborrece-se, aquilo está a arrastar-se mais do que devia, já se passaram minutos sem que nada fizesse rir. Foi contudo falso alarme, o palhaço rola ainda, ergue as pernas ambas, e contorce-se noutra pirueta. O respeitável público levanta-se e sai, comentando os leões e os trapezistas, os números de qualidade. Um dos miúdos quer ser trapezista quando crescer, e quantos adultos admiram, muito no segredo do seu ego, a glória e o glamour dos domadores. Vão além disso bem-dispostos, por qualquer razão que pouco importa.

Tal como não importa realmente de onde veio a bala que prostrou o palhaço. Há sempre balas na vida de um palhaço, há sempre dor para além do riso, mas o riso está lá para que outros esqueçam a dor, tal como as lantejoulas estão no fato para disfarçar o sangue, e é por isso que os palhaços não sangram. Os palhaços esvaem-se em lantejoulas, enquanto choram às gargalhadas.

O palhaço lá está prostrado, na arena obscurecida. Já só se contorce com a alma, que gira em piruetas tontas pelos labirintos da dor. O hábito já rotineiro fá-lo estancar a ferida, enquanto se prepara para um curto repouso de si mesmo. Curto, necessariamente curto, que o espectáculo seguinte não pode esperar. Já no exterior da tenda se acotovela a próxima leva de espectadores, que vão ao circo para admirar o mágico e os equilibristas e o elefante treinado, mas que não prescindirão de rir do palhaço.

E com toda a justiça, pois vale a pena ir lá só para o ver. É de facto impagável, aquele palhaço.