Era uma rapariga sossegada, discreta, que em nada se distinguia de tantas jovens discretas e sossegadas, que qualquer de nós pode encontrar, a cada passo que cambaleamos nesta vida. Não fumava nem bebia, ninguém lhe conhecia namorados, e gostava de rosas.
Eram a sua única paixão, aquilo que a destacava, a única cor que a fazia emergir do cinzento em que sempre se esbatera. Fazia questão de se rodear delas, em vasos e jarrões, e muitas noites, antes de se deitar, cobria o seu leito de pétalas, que desflorava com o prazer de uma violação consentida. Nada mais a fazia vibrar. Nada, excepto Luísa.
Poderíamos passar aqui o resto dos nossos dias a falar de Luísa, e não lograríamos sequer aflorar a questão essencial. Luísa não se narrava, não se descrevia nem se explicava. Como uma força da natureza, ela simplesmente era, e nada mais há a dizer depois desse nada que fica dito. Há pessoas por quem sentimos uma empatia instantânea, incondicional, quase irracional, e há aquelas que vemos como um leão vê uma corça, e apenas desejamos devorar de imediato, sem fazer perguntas nem reféns. E é uma coisa terrível quando todas essas características se juntam numa única pessoa, como era o caso de Luísa.
Luísa, para ela, era a idealização de uma rosa, o seu paraíso na terra, aquilo que o céu seria, se o céu pudesse ser melhorado. Era também, incidentalmente, sua colega de trabalho, e, mais ainda, sua chefe. Estava além disso, por essa época, em vias de ser despedida.
O problema, explicou Luísa, é o Dr. Carlos. Não sei que impressão fiz ao raio do homem, mas o facto é que não me larga, de manhã até à noite, e eu já não arranjo formas novas de lhe dizer que não estou interessada. Ainda deu para me rir quando ele me tentou comprar com a promessa de promoções, e de subida na carreira, mas agora passou à fase das ameaças, e tenho que o ouvir rosnar, num murmúrio prenhe de subentendidos, que só dele depende o meu emprego, e que a forma de o manter é aceder ao que ele quer. Sei muito bem que não o vou fazer, suspirou, só não sei que outra coisa farei. O desemprego, nos dias que correm, é uma perspectiva assustadora. Enfim, sursum corda.
Ora bem, deste ponto em diante, quase não vale a pena continuar a contar a história, sob pena de pecar por ser demasiadamente evidente. Luísa podia não saber o que fazer, a jovem estava pronta a admiti-lo, mas ela sabia bem o que lhe restava fazer, a única coisa que podia fazer, e que devia fazer – a coisa que jamais prescindiria de fazer. Alcançar o triunfo pela via da auto-aniquilação é um paradoxo, mas isso apenas serve para o colocar acima de qualquer crítica. Logo, como dissera Luísa, sursum corda.
Começaram a sair juntos em Maio, no dia em que entrava a Primavera. Seguindo o hábito consuetudinário, uma coisa levou a outra, sendo a primeira uma das habituais, a outra não menos costumeira, o que conduziu a que se viessem a conhecer carnalmente. Episódio trivial, esse, um homem e uma mulher, o resto segue-se naturalmente, e é por isso que andamos todos por cá, antes não andássemos. Nesse dia, todas as rosas murcharam, e algumas chegaram a deixar-se morrer.
Os anos foram passando e, se respeitaram a pedra, não se coibiram de ir comendo a argamassa. O Dr. Carlos, farto de trilhar caminhos já muito pisados, partiu para novas aventuras. A Luísa, liberta do assédio que chegara a pôr em risco a sua carreira, triunfava como executiva de topo. Exasperada de homens, bolinara, claramente, na direcção dessa muito mais compreensiva ternura feminina.
Enquanto a ela, continuou a andar por aí. Teve algumas amigas e, nas cambalhotas grotescas que este mundo vai dando, chegou um dia a ser namorada de Luísa. Aquilo não durou, contudo. Aquilo não durou, nem poderia jamais durar. Luísa, no topo do mundo, cheia de vida, requeria na sua companheira essas mesmas qualidades, e ela já não estava à altura de semelhante desafio. A namorada de Luísa tinha de exsudar vida, e ela, pelo seu lado, morrera muitos anos antes, logo no início da Primavera, quando os pássaros regressam do Sul.
Pouco antes de começar a caminhar para o rio, deteve-se numa esplanada, onde se ouviam os acordes de uma música. Chico Buarque, reconheceu ela, ao distinguir vagamente as frases, “Nessa noite lancinante, Entregou-se a tal amante, Como quem dá-se ao carrasco”. Disparates, pensou, enquanto caminhava para dentro do leito do rio, e sentia a água gelada tomar posse do seu corpo, de uma forma plena, total, como nenhum homem ou mulher jamais algum dia tomara. Mesmo as rosas, considerou ainda, nunca tinham sido tão exigentes.
Há que enterrar os nossos palhaços, se queremos manter um ar sério... até os elefantes, antes de morrer, têm o cuidado de o fazer em sítio adequado...
quinta-feira, 8 de novembro de 2007
sábado, 1 de setembro de 2007
Canonização.
(Só para começar a pôr alguma coisa).
Reza a lenda, uma dessas lendas – porque, nisto de lendas, ele há sempre muitas –, mas reza esta, concreta, que certo senhor fidalgo, num desses dias de antanho, se viu, ao entrar numa igreja, assediado por um petiz que lhe pedia esmola. Fosse por superstição do lugar sagrado, ou apenas por se sentir ditoso nesse dia, o facto é que substituiu a sua reacção natural, que seria a de repelir o garoto atrevido, por um desacostumado derramar de pecúnia. Deixando de lado o maravilhado infante, avançou pela nave, e constatou, transportado, que a imagem de Jesus lhe sorria, em jeito de aprovação. Operou-se, assim, uma grande transformação na sua vida.
Eu não contesto a lenda, nem fujo da ideia de que Jesus se lembre assim de sorrir a um pecador, no seu inusitado rasgo de caridade. Argumento talvez que, por essa lógica, ele se desfaria em gargalhadas de prazer, de cada vez que contempla o meu filho, ou outro qualquer anjo da mesma idade. Que diabo, eu faço-o, e não conto que o governo venha a pendurar a minha efígie sanguinolenta nas salas de aula, em obediência a uma velhíssima determinação do extinto Ministério dos Negócios Eclesiásticos, como símbolo do amor inexpressável de Deus (de resto, se para simbolizar o amor de Deus, é mister estar todo escavacado, então, bota inexpressável nisso). Mas pronto, Jesus é Jesus, Ele lá sabe o que faz, só a Ele compete escolher a quem há-de sorrir, e eu não tenho nenhuma querela com isso.
Não, a única coisa que me faz espécie, é que esse género de evento não alcance jamais ser aceite, nem fazer escola, a menos que suceda em locais consagrados, com símbolos e figuras autorizados, e em moldes consensuais. Cristo sorri numa igreja? Milagre, suave milagre! Deus surge, refulgente, em Ourique? Bravo, o Céu é por nós! Mas, sucede depois ao senhor António, grosso do tabaco e das libações da véspera, escarrar no passeio público. O escarro notório, esverdinhado, repelente, forma no seu entender uma imagem reveladora, quase uma mensagem divina. Como? Abaixo o senhor António, cadeia, e já, para esse herege, esse porco imundo que assim mistura às coisas santas a impiedade da sua emporcalhada expectoração. Ora, eu confesso que não sei, realmente, em que difere a escarreta do senhor António, que forma uma imagem, dessa outra imagem, escarrada a pincel sobre tela, de Jesus Cristo Nosso Senhor, nosso Deus e nosso Salvador.
Vem tudo isto a propósito da minha experiência metafísica de uma noite recente. Não posso, em boa verdade, e à face dessa igreja que é ainda maioritária entre nós, chamar-lhe uma experiência religiosa. Nem eu me encontrava em estado de graça, nem o local (a minha modesta cozinha), era um sítio consagrado, ou, pelo menos, um aceitável deserto, desses que propiciam eremitérios, e visões miraculosas. Quero dizer, eu ainda hoje mantenho que o aposento em causa apresenta estranhas e indesejáveis semelhanças com o deserto, sobretudo quando se pretende, por exemplo, comer alguma coisa, mas custa-me a crer que a Santa Madre Igreja aceitasse tão pedestre argumento. Donde, nem santo, nem altar. Mas, era pelo menos, todavia, consagrada a miraculosa imagem? Nem isso, helás! Tudo o que eu vi nessa noite foi um homem triste, um homem falido e destroçado, um homem perdido, acabado – onde só havia, simplesmente, um mero saco de batatas.
O homem metia dó. Agachado sobre o seu próprio destino, apoiava à parede fria o ombro vergado, a caveira derrotada. Tendo sido eu próprio a comprar, a trazer, a colocar ali aquele saco de batatas, fácil me foi determinar que o pescoço e a cabeça não passavam de um mero efeito óptico da sombra da pega, e que o corpo era apenas uma ilusão, nascida da disposição fortuita dos tubérculos. O meu homem triste era apenas, feitas as contas – um monte de batatas.
Fez-me contudo pensar – tal como o outro, o da cruz, nos faz rezar. São, portanto, igualmente úteis, e essa é a sua identidade. Sobre as diferenças com que o mundo os separa, julgo que não vale a pena alongar-me. Já disse demais, ou, então, nunca direi o bastante. Seja como for, nenhum conselho que eu aqui pudesse verter seria útil, excepto o de recomendar, vivamente, e com carácter de urgência, o cultivo da batata.
Reza a lenda, uma dessas lendas – porque, nisto de lendas, ele há sempre muitas –, mas reza esta, concreta, que certo senhor fidalgo, num desses dias de antanho, se viu, ao entrar numa igreja, assediado por um petiz que lhe pedia esmola. Fosse por superstição do lugar sagrado, ou apenas por se sentir ditoso nesse dia, o facto é que substituiu a sua reacção natural, que seria a de repelir o garoto atrevido, por um desacostumado derramar de pecúnia. Deixando de lado o maravilhado infante, avançou pela nave, e constatou, transportado, que a imagem de Jesus lhe sorria, em jeito de aprovação. Operou-se, assim, uma grande transformação na sua vida.
Eu não contesto a lenda, nem fujo da ideia de que Jesus se lembre assim de sorrir a um pecador, no seu inusitado rasgo de caridade. Argumento talvez que, por essa lógica, ele se desfaria em gargalhadas de prazer, de cada vez que contempla o meu filho, ou outro qualquer anjo da mesma idade. Que diabo, eu faço-o, e não conto que o governo venha a pendurar a minha efígie sanguinolenta nas salas de aula, em obediência a uma velhíssima determinação do extinto Ministério dos Negócios Eclesiásticos, como símbolo do amor inexpressável de Deus (de resto, se para simbolizar o amor de Deus, é mister estar todo escavacado, então, bota inexpressável nisso). Mas pronto, Jesus é Jesus, Ele lá sabe o que faz, só a Ele compete escolher a quem há-de sorrir, e eu não tenho nenhuma querela com isso.
Não, a única coisa que me faz espécie, é que esse género de evento não alcance jamais ser aceite, nem fazer escola, a menos que suceda em locais consagrados, com símbolos e figuras autorizados, e em moldes consensuais. Cristo sorri numa igreja? Milagre, suave milagre! Deus surge, refulgente, em Ourique? Bravo, o Céu é por nós! Mas, sucede depois ao senhor António, grosso do tabaco e das libações da véspera, escarrar no passeio público. O escarro notório, esverdinhado, repelente, forma no seu entender uma imagem reveladora, quase uma mensagem divina. Como? Abaixo o senhor António, cadeia, e já, para esse herege, esse porco imundo que assim mistura às coisas santas a impiedade da sua emporcalhada expectoração. Ora, eu confesso que não sei, realmente, em que difere a escarreta do senhor António, que forma uma imagem, dessa outra imagem, escarrada a pincel sobre tela, de Jesus Cristo Nosso Senhor, nosso Deus e nosso Salvador.
Vem tudo isto a propósito da minha experiência metafísica de uma noite recente. Não posso, em boa verdade, e à face dessa igreja que é ainda maioritária entre nós, chamar-lhe uma experiência religiosa. Nem eu me encontrava em estado de graça, nem o local (a minha modesta cozinha), era um sítio consagrado, ou, pelo menos, um aceitável deserto, desses que propiciam eremitérios, e visões miraculosas. Quero dizer, eu ainda hoje mantenho que o aposento em causa apresenta estranhas e indesejáveis semelhanças com o deserto, sobretudo quando se pretende, por exemplo, comer alguma coisa, mas custa-me a crer que a Santa Madre Igreja aceitasse tão pedestre argumento. Donde, nem santo, nem altar. Mas, era pelo menos, todavia, consagrada a miraculosa imagem? Nem isso, helás! Tudo o que eu vi nessa noite foi um homem triste, um homem falido e destroçado, um homem perdido, acabado – onde só havia, simplesmente, um mero saco de batatas.
O homem metia dó. Agachado sobre o seu próprio destino, apoiava à parede fria o ombro vergado, a caveira derrotada. Tendo sido eu próprio a comprar, a trazer, a colocar ali aquele saco de batatas, fácil me foi determinar que o pescoço e a cabeça não passavam de um mero efeito óptico da sombra da pega, e que o corpo era apenas uma ilusão, nascida da disposição fortuita dos tubérculos. O meu homem triste era apenas, feitas as contas – um monte de batatas.
Fez-me contudo pensar – tal como o outro, o da cruz, nos faz rezar. São, portanto, igualmente úteis, e essa é a sua identidade. Sobre as diferenças com que o mundo os separa, julgo que não vale a pena alongar-me. Já disse demais, ou, então, nunca direi o bastante. Seja como for, nenhum conselho que eu aqui pudesse verter seria útil, excepto o de recomendar, vivamente, e com carácter de urgência, o cultivo da batata.
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