O Frango:
O frango firmou-se na borda do passeio, unhas cravadas no rebordo empedrado, e olhou para o seu lado esquerdo. Olhou depois para a direita, de novo para a esquerda, e depois repetiu tudo, como se não soubesse que outra coisa fazer. Passavam carros em todas as direcções.
O frango firmou-se ainda melhor, aguardou pacientemente uma pausa no trânsito, e lançou-se em passo de corrida, corrida essa que terminou no traço contínuo que dividia a estrada. Aí se deteve, bico exaurido do ritmo cardíaco acelerado, penas ameaçando voar no sopro dos carros que se precipitavam à sua volta, correndo num sentido os que lhe passavam pela frente, no outro os que o roçavam por trás. O frango firmou as unhas no asfalto, esforçando-se por não ser arrastado por todas aquelas correntes desencontradas.
O trânsito deste lado era pior, o que obrigou o frango a aguardar longamente, até que surgisse uma aberta. Esta foi bastante estreita, e só a rapidez do frango lhe permitiu atingir incólume o passeio oposto. Aí se firmou ofegante, e enquanto ofegava não alcançou evitar a interrogação que ameaçava corroê-lo por dentro: por que razão, na realidade, tinha ele atravessado a estrada?
O Corvo:
O corvo contempla-me sem cessar, negro como eu o contemplo a ele, soturno como cada dia que me vai passando. Não se trata do corvo de Poe, este é um bicho mais calado, que nem se dá ao trabalho de me dar os bons dias, quanto mais de me lançar um casual “Nevermore”. E todavia tudo nele, tudo menos a sua voz, tudo vaticina o meu fim, e me diz que tudo acabou já, e jamais voltará. O corvo seria a minha condenação, se a condenação não tivesse voz.
Tem os olhos vermelhos como carvões, aqueles carvões do Inferno que não existe, não depois da nossa morte. O Inferno vive-se neste mundo, e tem penas muito mais duras que os veros tições do Inferno, vermelhos como os olhos do corvo.
As patas do corvo têm unhas que se cravam na minha carne, enquanto o seu bico me despedaça o coração. Não é por acaso que o corvo me mata, o corvo mata-me porque o quer fazer. E acaba por ser bem sucedido, para além de tudo.
O corvo é um pássaro engraçado, e dá um bom animal de estimação.
1 comentário:
Na volta o frango talvez só tenha atravessado para testar a sua coragem. Ou seria ousadia de atravessar uma estrada tão perigosa? Ou mesmo insensatez: do lado inicial não seria certamente tão perigoso!
Sempre gostei de corvos. Não tenho a certeza se deixei a carne protegida, porque realmente volta e meia senti umas bicadas de algo com belas e brilhantes penas. Mas ainda estou por aqui, viva e com um sorriso, por isso o mal não há-de ter sido muito. Ou pelo menos não irreversível!
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