A numerologia tem desde sempre fascinado a humanidade, e o 7 é aquele número místico entre todos, quantidade sempre recorrente nestes cálculos exotéricos. Conta-se a história do homem que passou todo o seu dia perseguido por esse mesmo número, que a qualquer despropósito lhe aparecia. Finalmente rendido às evidências, acabou por gastar todas as suas poupanças (eram 7 mil dólares), numa aposta do hipódromo; todo o dinheiro que tinha, apostado no cavalo número 7, na sétima corrida. Nem a numerologia nem o cavalo o desiludiram, pelo que o bicho veio a terminar a prova em sétimo lugar! Julgo que há provavelmente uma moral qualquer nesta história.
Vem tudo isto a propósito da próxima quinta-feira santa, que este ano calha adequadamente no dia das mentiras, dia em que se celebram também os sete meses sobre o septuagésimo aniversário da tomada de Varsóvia, que marcou o início da segunda guerra mundial. Setenta anos volvidos sobre o esmagamento da capital polaca pelos exércitos alemães, caí eu próprio, esmagado por coisa nenhuma que se visse. Passando agora sete meses sobre a infausta data, parece-me apropriada uma missa de sétimo dia (sim, eu sei que as unidades são confusas, mas a numerologia é assim mesmo, misteriosa e cabalística).
Tratando-se de uma missa de corpo presente, e para mais de corpo falante, e exibindo toda a aparência de vida, isto se descontarmos a vida toda que se retirou de trás da aparência, deixando esta entregue ao que pudesse fazer por sua conta, deu-se aqui a oportunidade sem dúvida rara de colher um depoimento em primeira mão por parte do falecido. E foi desse modo que me vieram perguntar em que consistia, de facto, esta coisa de perambular cadáver pelo mundo dos vivos. A pergunta deixou-me confuso e indeciso, não pela sua especial dificuldade, mas porque tudo hoje em dia me deixa confuso e indeciso. Se é verdade que morremos por partes, então estou seguro de que as certezas são a primeira coisa a morrer, e mortas as certezas não fica nada, nem sequer a dúvida – só pode ter dúvidas quem tiver certezas. Não, depois de morta a última certeza, fica apenas uma apatia confusa e indiferente, que tão depressa se apresta a salvar a pátria como a morrer pelos seus inimigos, conforme o que aconteça primeiro.
Ganhei um pouco de tempo empurrando com um bom golo de brandy um molho de comprimidos, já não sei bem quais, mas julgo que seriam de facto os correspondentes a essa hora. É difícil distingui-los, pois são uma quantidade deles, de todas as formas e cores, e mais não tendo de comum que a frase inscrita na embalagem, “não ingerir em simultâneo com álcool”. Depois desviei a conversa, e quis saber como eram as coisas vistas pelo outro prisma, que impressão fizera ao mundo o meu passamento. A resposta foi a esperada, Absolutamente nenhuma.
Quis que elaborassem, e não se fizeram rogados. A maioria das pessoas, explicaram-me, laborava na convicção de que eu estaria ainda vivo, talvez por serem as duas alternativas equivalentes, no seu entender. Os poucos que conheciam não ser eu mais já que um lémure, alguém que deixou já de ser, encaravam o facto com aquela resignação aliviada que por uso reservamos para aquelas desgraças lamentáveis que nos fizeram o favor de acontecer a outra pessoa qualquer. É assim, o que se há-de fazer, estamos todos sujeitos a lixarmo-nos um dia, desta vez foi ele, e se deus quiser nunca hei-de ser eu. E a vida continuou.
Cabisbaixo, aceitei o que já sabia. Inquiri ainda se podia ao menos tomar o meu estado de morto definitivo, o meu lugar competente naquele caixão da missa do sétimo dia. Mas responderam-me que nem pensasse nisso. Ao que parece, estava demasiado vivo de corpo para ser um morto, demasiado morto de alma para ser um vivo. Mas então? Então, responderam-me, faz como fizeste quando os tanques de Varsóvia te passaram por cima: aguenta-te, que outro remédio tens tu? Bebe uns copos, toma uns comprimidos, vai misturando isso tudo para ver no que dá. Olha, e para te ires entretendo, escreve umas merdas e publica-as. Não te vai servir de nada, nem esperes que alguém as leia, ou que as entenda se as ler, ou se interesse mesmo no caso de as entender, mas o que mais queres? Mal não te faz, e sempre ajuda a passar o tempo.
1 comentário:
Gosto do 7: é um número simpático. Não sou dada a misticismos: gosto mesmo só do número, como gosto de muitas coisas só porque sim.
E pode ser um bom augúrio. E porquê? Porque qualquer coisa para mim pode ser um bom augúrio seja do que for. Do mesmo modo que alguns se agarram ao misticismo, que não faz sentido, podemos agarrar-nos só ao optimismo. Tem o mesmo valor e o que perde em mistério e interesse ganha em fôlego para encarar os dias que nos restam até à morte física.
Adorei o texto!
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